segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Il Polverone

São histórias para uma noite de calmaria. Seleccionei estas três, no meio de muitas mais - tão lindas e tão frágeis - que fizeram com que as minhas noites se prolongassem até aos dias:


A FOTOGRAFIA

Uma tarde, no comboio, um homem, de pé, sentiu uma mão tocar-lhe e reparou que um jovem soldado lhe oferecia o seu lugar, como se faz com os velhos. Aceitou, cheio de vergonha, por ser a primeira vez que lhe sucedia e, de olhos perdidos naquela noite que se escapava pelas janelas, de repente, sentiu-se desolado pela sua idade. Depois fechou-se em casa e a sua tristeza trespassava os muros, circulando pelas estradas. Era manhã, quando a carta chegou de uma cidade distante. Abre-a e encontra a fotografia de uma senhora anciã, completamente nua. Nenhum comentário ou assinatura. Mete os óculos para procurar nas velhas feições da mulher se, por acaso, a conhecia. Descobriu que se tratava do único grande amor da sua vida. E, conhecendo a grandeza da sua alma, de imediato percebeu a intenção da mensagem: a mulher, sabendo que ele vivia triste, não se envergonhava de lhe mostrar o próprio corpo, para o fazer perceber que não devia angustiar-se e que os sentimentos são mais fortes do que a carne.


A ESPERA

Estava tão apaixonado que se fechou em casa, sentado junto à porta, para poder abraçá-la assim que ela batesse para lhe vir confessar que também o amava. Mas ela não veio e ele envelheceu. Um dia alguém tocou, levemente à porta e ele, apavorado, fugiu, escondendo-se atrás do armário.


JUNTO AO FOGO


Decidiu abandonar as mulheres e, por longo tempo, de facto, viveu só. Passeava, olhava as árvores e frequentava o café sem voltar o rosto para qualquer mulher bela.
Mas um dia, uma jovem colocou-se a seu lado e disse-lhe que o amava. Durante muitos dias o homem recusou-a, até que a mulher deixou de vir ao café, desaparecendo sabe-se lá para onde.
Só agora, aquele tal, foi sacudido por tão grande amor que percorreu, a pé, toda a cidade até que parou a conversar com uma daquelas mulheres que vive junto às fogueiras, na periferia. E nem reparou que era a mesma rapariga que o amava.

in Il Polverone - Storie per una notte quieta, Tonino Guerra

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Natal e Nostalgia


Passou o Natal. Passaram os dias de abundância, superficialidade e consumismo desenfreado. Não podemos estar verdadeiramente felizes se precisamos de tanto para viver. Não podemos estar a desenvolver o nosso lado mais nobre. Só prendas, só sucesso, só "subir na vida" através de carros novos, roupas novas, perfumes novos, paixões novas... o estilo americanizado e burguês.
As prendas que recebi e as comidas que comi só me trouxeram um prazer passageiro, como aquele que se tem com alguém que não se ama.
O grande momento deste Natal, para surpresa minha, foi jogar à sueca com o meu tio Jorge. Esse tio trouxe-me de volta a mesa da casa dos meus avós em Oliveira, onde, na noite de Natal, ouvíamos os nós das mãos a baterem agilmente sobre a madeira, a cada triunfo da jogada. Aquela casa ampla, simples, cheia de sol e videiras, com soalho que fazia abanar as louças da cristaleira à nossa passagem, com colchões de palha e cobertores pesados, mas que deixavam entrar o frio a cada movimento na cama.
Aquelas férias de verão na aldeia são inesquecíveis. Sinto-me feliz por ainda ter feito parte de um tempo onde as crianças podiam brincar livremente pelos campos atrás de borboletas e nadar em tanques de água esverdeada com girinos e sapos. Uma época em que não se obrigava as crianças a tomar banho todos os dias nem se usava amaciadores para o cabelo. Isso hoje seria chamado de "negligência ou falta de higiene". O meu avô chamava-lhe simplesmente "coisas de gente da cidade" ou "poupança de água."
Hoje uso cremes bem cheirosos, mudo mais vezes de roupa e já não corro nua pelos campos... Mas sinto falta de uma vida mais natural, mais ligada à terra, ao mar e às estrelas. Em criança todos os dias olhava as estrelas antes de dormir, da varanda do meu quarto. E esse ser essencial, hoje talvez chamado por uns de "selvagem", por outros de "hippie", continua a pulsar dentro de mim, continua a expressar-se nas férias, nas viagens todo o terreno que faço. Tenho saudades das cascatas brasileiras, dos andes equatorianos, do deserto mexicano. Mas as saudades mais antigas, as que estão por baixo da pele, no sangue, são as daquele tempo mágico. Porque o meu ser não vai de férias, existe desde sempre.

domingo, 21 de dezembro de 2008

A grande sereia

Quisera ter proferido outras palavras
ou esquecê-las...
encostando a minha solidão no teu ombro

eu fui naufraga na minha praia
afastada da minha casa de água
no fundo do oceano

E desde então a procura
Para voltar a ser muda
como os peixes

e dançar em ondas de fogo

...

Será que então me verias?

Virgínia Silva

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Era uma vez


Era uma vez uma menina que escondia uma figueira nas suas raízes. Uma figueira cheia de vida e abundância.
Isso acontecia nas histórias maravilhosas...
Há meninas que têm uma imensa solidão e não têm raízes. As meninas que um dia foram retiradas às suas famílias, que apenas as depositaram neste mundo para se perderem em lugares sombrios onde se despe a alma e as carícias que suportam nunca são doces, nem cheiram a mar, ou aquecem por dentro, antes as deixam cair num abismo sem flores. Há meninos que foram arrancados às suas origens para aprenderem a morrer e a deixar morrer. Os meninos que nunca saberão amar uma mulher, porque nunca pediram licença para entrar no seu corpo transformado em refúgio de raiva e melancolia. Esses meninos que esqueceram a sua humanidade pelo caminho. Esses pequenos soldadinhos com chumbo nos corações.

Enquanto isso, os amantes por amar trocam pedacinhos de noite.

domingo, 30 de novembro de 2008

Tatuagem de família

As pernas ainda tremem
mesmo confortáveis
longas
sem sapatinhos de verniz

Elas guardaram a memória
daquele tempo perdido
onde os pratos voavam
e os cinzeiros tinham
rosas infantis na neve

Elas ouvem ainda
as palavras atiradas
à parede
o silêncio
naquele fumo
pleno de paixão

Por isso tremem as pernas
outrora de menina
sem sexo ou nexo

Sem agulha tatuadas
registos do nosso sangue comum. 

Virgínia Silva

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Terra na Boca - semana 1

Era uma vez um rei...
Era uma vez uma rainha...
Era uma vez um rei e uma rainha que queriam ter um filho...
"Eu quero ter um filho, nem que seja um cavalo!"
Era uma vez uma velha que queria casar:
"Vistes por aí o meu noivo?"
Era uma vez uma menina enterrada por uma velha...
Era uma vez uma figueira que escondia uma menina nas suas raízes.
Ahhhuuuuuuuu!

Ontem debaixo de frio e na companhia de fantasmas, o nosso projecto de teatro começou a ganhar forma. Os contos começaram a confundir-se e a fundir-se numa teia de múltiplos significados e associações. A magia já lá está. Estou muito entusiasmada com este projecto! E o mais importante, como disse o Luciano, não é o objectivo, mas caminho até ele. Já começamos a desbravar terra.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Poesia de Quinta

A noite de poesia do Pinguim foi linda - saudei velhos fantasmas com novos encontros. Hoje alguém me lembrou de Sophia, que continua a ser uma alma que se afina com a minha:

ReGreSSaRei

Eu regressarei ao poema como a pátria a casa
Como à antiga infância que perdi por descuido
Para buscar obstinada a substância de tudo
E gritar de paixão sob mil luzes acesas

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

A noite não é MESMO igual para todos

O meu pai daria lágrimas por Obama também :)

terça-feira, 4 de novembro de 2008

A noite não é igual para todos

Semi-deitada nesta cama que não é minha, envolvida pela voz de Tori Amos, a voz quente e nostálgica desta mulher do sul, tento escrever alguma coisa sobre nada ou sobre tudo.
Sem pudores, pois já quase ninguém que conheço lê este blog, posso escrever sobre tudo.
Tenho as costas partidas de tanto entusiasmo na dança africana. De tanto expressar o indizível, de tanto abanar a anca apelando à magia do universo que está um pouco parada pelos meus lados.
Sinto que a noite não é igual para todos, que os lugares comuns já não me maçam, às vezes são mesmo necessários para nos sentirmos parte de algo.
Antes de acordar quase sem movimentos, antes de ter de ir nas quatro patas ancestrais à casa de banho de noite, vi um médico na televisão a falar sobre a morte. Foi no Domingo, dia dos mortos, dia daqueles que partiram para outra dimensão. Esse médico dizia que cada cadáver que abria era um acto sagrado, de imenso respeito por esse corpo que horas antes havia vivido tal como qualquer um de nós. Isto emocionou-me tremendamente e desejei que tivesse sido alguém com esse sentimento que tivesse realizado esse acto sagrado no corpo amado do meu pai. A morte traz-me sempre à memória a experiência mais profunda da minha vida. A ausência do meu pai, um homem que sonhou demasiado e, de facto, realizou muito pouco. Um homem feito de ternura e de fragilidade, de revolta e indignação. De um ateu profundamente religioso e humano. De cartas de receber e de perder. De filmes italianos e de canções dos anos 60. De lágrimas por Nelson Mandela e por Rosa Mota. De livros sobre o Holocauto. Do "Crime do Padre Amaro" lido com a capa d'"Os Lusíadas". E de muitas histórias de encantar e de escurecer que iluminaram a minha infância e determinaram a minha vida.
Esse médico disse também que vivemos num mundo de perpétua novidade e absorção. Que está mais interessado em rever, reler, voltar a lugares. Que a ânsia da novidade nos está a deixar infelizes. Talvez ele tenha razão - disse para mim.
E agora é melhor parar, ou amanhã não me levanto com dores nas costas. Porque há dores que ainda não se curam com Reumon gel.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Ciclo de Cinema Discriminação&NãoViolência














O grupo da Amnistia e o grupo do Movimento Humanista do Porto organizaram um ciclo de cinema inserido na campanha DISCRIMINAÇÃO E NÃO À VIOLÊNCIA.
Este decorrerá em vários lugares do Porto como a Rota do Chá (Artes em partes), Clube Literário do Porto, Maria vai com as Outras, Gato Vadio.

Espero que apareçam - começa na próxima Quinta - para ver os filmes e "cavaquear" sobre eles depois. Cliquem no cartaz para ver a programação!


quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Á f r i c A

Rebecca, minha querida amiga de outras viagens, foi lá. E claro, levou-me com ela...








segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Non ti muovere

Quem te ama existe desde sempre, antes de ti, antes de te conhecer.

No meio desta semana de mudanças e tradução completamente desenfreada, sem magia... eis que ontem à noite, no meio de "pilasters" e "mísulas", surge esta história, que - é sempre assim - não explico, me tocou particularmente.
É uma história como tantas outras que podem acontecer nas nossas vidas e que, por serem quase sempre ocultas e vividas em segredo, com pureza - dão um sentido ao nosso quotidiano.
Aquela barriga vermelha não me sai da cabeça... tão vermelha quanto o sapato na despedida.

Aqui está, NÚ e intenso... como eu gosto!

sábado, 27 de setembro de 2008

B a r C e l o n A



Martí, meu amigo Catalão de coração, membro do Movimento Independentista da Catalunha, corria ao lado do vencedor da Corrida das festas da padroeira da cidade, Santa Mercé. Corria para chamar a atenção de um jovem do movimento que está a ser julgado, porque esteve presente numa manifestação contra o poder do governo espanhol. "Manifestar-se é um direito" (dizia em catalão o cartaz que tinha nas mãos). Vídeos deste momento e as fotografias do vencedor não saíram na televisão espanhola. Saíram notícias da festa, da corrida, mas não do vencedor a chegar à meta, simplesmente porque ao seu lado ia Martí, a chamar a atenção para algo incómodo.
É verdade que em Barcelona há várias manifestações de jovens que não estão convictos dos seus ideais, mas querem apenas encontrar algo para fazer que lhes dê uma imagem de "activista", de pessoa interessada nos direitos humanos para poderem dormir mais em paz consigo próprios. É uma tendência, uma moda também.
Mas ainda há pessoas como Martí, fortemente idealistas - embora com uma visão ampla do que os rodeia - que são cada vez mais importantes nesta sociedade paradoxal, onde a poesia e os ideais são vistos com ironia e desdém.
É pena que as pessoas em Portugal - e em geral no mundo mais capitalista - estejam a ficar tão egoístas e tenham tão pouca participação social. Na América Latina assisti a vários movimentos na rua, várias expressões de solidariedade e afecto. As pessoas são mais empenhadas socialmente, talvez porque sintam muito mais na pele as tomadas de posição políticas. Ora Portugal... este país não é assim tão pobre. Nunca as pessoas viveram tão bem. Mas queremos sempre mais, queremos igualar-nos em vez de nos diferenciarmos pela nossa autenticidade. A pobreza aqui é mais de espírito. E quando o espírito é pobre...
Em Cuba foi diferente, era preferível morrer a viver sem vida. Che sabia disto quando tomou nas suas mãos a revolução. Um filme a ver "Che, o revolucionário".

domingo, 21 de setembro de 2008

No Retiro


Foi uma semana intensa em terras de Espanha e Catalunha e - sobretudo - dentro de mim!
Em Madrid! O motivo - RAFAEL!

Adorei o Parque del Retiro onde mais tarde dormimos uma siesta na relva :)

A lua também esteve cheia durante este tempo e os madrilenhos
celebraram com a Noche Blanca - uma noite de eventos culturais e artísticos por toda a cidade.
Enfim, Madrid foi essencialmente para rever o meu querido amigo que já não via há 5 anos e para estender-me ao sol no parque. Claro que o Museu del Prado também fez parte da estadia... com este quadro hilariante:

"Aparición de la Virgen a San Bernardo", de Alonso Cano

Já não tenho paciência para correr todos os pontos turísticos!

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

ONZES de Setembro



"O importante não é saber quem era este homem, mas saber quem somos nós ao olharmos para esta fotografia." (Familiar de uma das vítimas de 11 de Setembro de 2001)







La patria está forjando la unidad

De norte a sur se movilizará

desde el salar ardiente y mineral

al bosque austral,

unidos en la lucha y el trabajo irán

la patria cubrirán.

Su paso ya anuncia el porvenir.

De pie cantar que el pueblo va a triunfar

millones ya imponen la verdad.

De acero son, ardiente batallón.

Sus manos van, llevando la justicia y la razón,

mujer,con fuego y con valor,

ya estás aquí junto al trabajador.


Canto chileno a 11 de Setembro de 1973, dia do golpe de estado que - com o apoio dos Estados Unidos - estabeleceu a ditadura de Pinochet no Chile.



"Al fossar de les Moreres no s'hi enterra cap traïdor, fins perdent nostres banderes serà l'urna de l'honor." (Tradução: No fosso dos mortos não se enterra nenhum traidor, mesmo perdendo as nossas bandeiras, será um fosso de honra - Disse um pai, quando queriam enterrar um dos seus filhos que tinha combatido ao lado das tropas espanholas contra a independência da Catalúnia- 11 de Setembro de 1714- dia da perda da Independência da Catalúnia).

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

"Aqui ninguém me põe a pata em cima"

Ouvi-o algumas noites no Pinguim. Vi-o raras vezes.
Uma única vez comi ao lado dele e troquei com ele algumas palavras. Foi em Abril, na festa dedicada à comemoração do 25 de Abril. Tinha ouvido já várias histórias sobre o seu carácter impulsivo e, por vezes, rude. Naquela noite, porém, um homem calado, apagado, doce na sua fragilidade, estava a comer silencioso ao meu lado. Parecia um homem tímido até. A nossa fragilidade sobressai no início da nossa vida ou no fim dela.
Quando o ouvi a declamar o poema Soneto Presente de Ary dos Santos, fiquei surpreendida. Era como se uma chama que pensávamos extinta se elevasse das cinzas. Causou-me uma forte impressão. Naquela noite tinha sentido a morte a rodear aquele homem ao jantar e, naquele momento, senti o quanto a vida dentro dele dizia NÃO a essa inevitabilidade.
Como o disse, não éramos amigos, mas poesia que tinha dentro de si tocou-me naquele momento.
Apesar de tudo, ele tem um ponto a seu favor - os poetas são eternos, deixam sempre as suas palavras escritas:

e há o fim
só os valores
que esperam
aprendem a
saber esperar
pelos outros
as pérolas sós
amam no fim
partem para
outro fim
chegam ao meio
com dignidade
os homens são
apenas a passagem
do vácuo ao cheiro
o único princípio
o último atalho
o primeiro refúgio
o nosso amor
sublimado

de Joaquim Castro Caldas

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Migalhas de SOL

No veludo dos cabelos que partem
Penso em ti

Dentro dos desertos do quotidiano
tão áridos - como esta sede
que não se sacia -

nos perfis inacabados
de quem nunca se conheceu
ou ousou descobrir

penso em ti

desde sempre
que me acompanhas
em águas mais límpidas
que as conversas
sem fronteiras

resides na minha
vida nómada
que se impõe
em todos os serões televisivos
em cada montanha
que escalo todos os dias

em ti
que mergulhaste por todos
os mares
sem nunca teres viajado
ao fundo
do meu oceano

em ti
ausente em todas
as minhas auroras de carvão
tão somente sós

surpreende-me a magia
do silêncio
do sol que me deixas

penso em ti
e em mim

sambando
até ao próximo
eclipse

Virgínia Silva

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

"Meu ser vive na Noite e no Desejo. Minha alma é uma lembrança que há em mim."

Num encontro de seres afinados - entre um astronauta e uma (?) - tudo pode acontecer, o mundo torna-se pequenino e as essências expandem-se, trocam-se. E surgem reflexões...
Nós somos seres paradoxais, pluridimensionais, mas estamos sempre a estabelecer-nos fronteiras interiores - já para não falar das exteriores. Temos a pretensão de nos conhecermos, de nos arrumarmos em gavetas e de nos etiquetarmos como racionais ou emocionais, mentais ou físicos, nómadas ou sedentários, viajantes ou entediantes ... resultados de uma escola formatizada de dictomias, de ditaduras sociais, de ideias de seres humanos, supostamente reputados no seu conhecimento, que as cinzelaram no nosso inconsciente colectivo. Cárceres do espírito.
É difícil derrubar fronteiras, sem nos derrubarmos. É doloroso seguirmos o nosso caminho, solitários, sem cortarmos laços de ilusão. Amores sentidos, mas ilusoriamente compatíveis. Amizades profundas, mas perdidas em alguma ramificação não vista, em algum sinal que preferimos ignorar. "Talvez já não tenhamos muito em comum." - uma frase espetada no silêncio daquela noite - luminosa - mas varrida para outro lugar cá dentro que não magoe.
Era bom agirmos como a natureza "que não se incomoda com a nossa presença, mas também não nos pede para ficarmos". Era bom que as palavras terminassem no desejo sem lembranças.
Talvez o vulcão que reside em nós seja tão poderoso, tão maravilhoso, tão feliz... que é menos aventuroso extingui-lo porque não estamos habituados a ser felizes. Para ser feliz é preciso ser.
Seremos mais felizes sem limites ou ilimitados? Escalando a montanha em círculos, a medo, ou sem mapa, sem o objectivo do cume? Sempre a descobrir novos paradoxos, que só vislumbram a riqueza que somos. Como nós essencialmente somos. Seres em regresso, seres sujos de frases feitas e gestos clandestinos, instalados em nós por sedução subtil e violenta. Seres que precisam de desaprender para se reencontrar.
Seres em revolução.

Hoje é - por sintonia - o aniversário de um "homem de espírito". Parabéns Davide!

sábado, 16 de agosto de 2008

Flores de plástico

Eu sou da Era dos Sentimentos

da mesma era
em que as palavras
explodiam
cá dentro
dizimando dúvidas
ou ilusões

em que os adeuses
se concretizavam
com cartas
ou bilhetinhos sentimentais

da era do sangue
dos copos partidos
das lágrimas inacabadas
da ausência de apetite
para viver e existir

Eu pertenço à Era Sensível

os pontapés nas pombas
ainda me magoam
a mão estendida na rua
dá um nó no meu peito

e o meu coração encolhe
quando me oferecem
flores de plástico

Virgínia Silva

sábado, 9 de agosto de 2008

8-8-8


Dizem que é uma data simbólica. Dizem que é uma data importante. Que a humanidade entra numa Nova Era. Uma Era de Consciência. De maior e melhor desenvolvimento do ser humano.
Esta semana estive no Andanças - festival de danças tradicionais do mundo. Dancei italianas do sul, cabo verdianas, afro tribais... aquelas que têm mais vida e sabor. Aquelas que mexem mais cá dentro, que nos levam a estados de transe, de desbloqueios. Foi bom, a companhia foi divertida, os encontros foram (in)esperados e os desencontros úteis. Mas o meu ser está em crise. Está a pôr em causa as suas reais motivações e interesses. A sua missão na vida.
Algures fora do festival, em andanças para o Poço Azul, encontrei este lugar escondido. Veio-me à memória outro lugar semelhante, onde passei os meus pedacinhos mais recônditos e felizes. Os mais essenciais, que ficaram na aldeia de Oliveira, nos campos e na eira da quinta dos meus avós. Acho que o caminho é por aí. É o caminho que se faz por dentro. Este caminho está cruzado com o pronunciado pelo Dada, em Sintra, há 6 anos: "Há pessoas que sobem a montanha na vertical, tu sobes em círculos". Ele tem razão. Ele tenta abrir uma escola em Portugal para uma educação para a consciência, para valores mais sábios, veiculados com o tantra yoga.
O que eu sei e sinto é que preciso de reservar mais tempo para conversar comigo - algo que tenho feito muito pouco ultimamente - e isso é mesmo importante.
Foi bom viver com a Itália, com as carbonaras, as graças e as inovações em casa. Viver com a criatividade e o humor. Com a fantasia. Agora é preciso voltar a viver com a essência.
Dizem que nesta data se vai abrir o portal. Que isso pode causar crises que trazem revoluções. Talvez seja por isso que me sinto assim. Que continue a crise e que o cerne de toda a revolução - a mudança - se realize.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Pela chama


No dia 8 de Agosto, a chama olímpica está no seu auge. Inicia-se mais um espectáculo de coragem e de determinação, em que se celebra a superação do ser humano nos seus limites físicos e também espirituais. No entanto, esse espectáculo de glória esconde outros feitos muito menos vitoriosos.
O tecto do mundo foi subjugado e nublado há 43 anos. O Tibete, uma cultura de luz e sabedoria, que a humanidade tanto necessita, cuja maior riqueza é precisamente a dos seus valores, continua a tentar manter a chama acesa nos seus habitantes, cansados de tanto desrespeito e violações.
Por isso nesse dia estou pelo Tibete e por uma China mais justa e visionária.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Co incidências

Sempre me aconteceram estes fenómenos com muita incidência.
São sintonias, reflexos da minha vida interior. Vi-o 3 noites seguidas. Pela força do pensamento ou do coração que bate.
As coincidências são as magias do quotidiano.
São as surpresas no meio da rotina. São uma das minhas maiores fontes de inspiração para a vida e para construir o puzzle simbólico que está cá dentro. São a realidade que outros ousam dizer que é distorcida. Viva a distorção! Elas só acontecem porque vivemos num universo de sintonia apesar de todos os desencontros e solidões.
Ontem vi que a timidez existe nos que falam muito e abraçam muito também. Vi a timidez a pegar-me nas mãos. A realidade é múltipla, a normalidade é ilusória. Como cantou Caetano um dia -
De perto ninguém é normal
.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Jardim em mim

Hoje...

Vou dançar África. No corpo e no coração. Às 23h no espaço Contagiarte - para quem quiser aparecer e dançar também :)

Outrora era o
Jardim do Éden
Agora é o Jardim
Das pedras

Perdas
Parcas notícias
De mim

E as flores continuam a abrir...


Ontem tive um momento de luz como havia algum tempo que já não tinha... um bocado de tarde num café vegetariano virado para um pequeno jardim de árvores e de pedras em mais uma casa antiga do Porto. Esta é uma cidade de espaços escondidos. É uma cidade que mostra muito do que tem de pior e esconde preciosidades.
E visitei a casa nova dos italianos. Uma casa cheia de pormenores, de detalhes que vêm do passado iluminar a nossa supostamente maravilhosa contemporaneidade. Um deles foi o Inocêncio, menino de 2 únicos anos de vida, esquecido na lápide de mármore, encontrado pelos irmãos Tralha na escuridão do sótão da casa... UUUUUUUhhhhhhh - Assombroso!

sexta-feira, 13 de junho de 2008

A mulher-esqueleto

Ela fora castigada. Ela havia feito alguma coisa que seu pai não aprovava, embora ninguém mais se lembrasse do que havia sido. Seu pai, no entanto, a havia arrastado até os penhascos, atirando-a ao mar. Lá, os peixes devoraram a sua carne e arrancaram os seus olhos. Enquanto jazia no fundo do mar, o seu esqueleto rolou muitas vezes com as correntes. Um dia um pescador veio pescar. Bem, na verdade, em outros tempos muitos costumavam vir a essa baía pescar. Esse pescador, porém, estava afastado da sua colónia e não sabia que os pescadores da região não trabalhavam ali sob a alegação de que a enseada era mal-assombrada.
O anzol do pescador foi descendo pela água abaixo e se prendeu - logo em quê! - nos ossos das costelas da Mulher-esqueleto. O pescador pensou: “Ei, agora apanhei um grande! Agora pesquei um mesmo!” Na sua imaginação, ele já via quantas pessoas esse peixe enorme iria alimentar, quanto tempo a sua carne duraria, quanto tempo ele se estaria livre da obrigação de pescar. E enquanto ele lutava com esse enorme peso na ponta do anzol, o mar se encapelou com uma espuma agitada, e o caiaque empinava e sacudia porque aquela que estava lá embaixo lutava para se soltar. E quanto mais ela lutava, tanto mais ela se enredava na linha. Não importa o que fizesse, ela estava a ser inexoravelmente arrastada para a superfície, puxada pelos ossos das próprias costelas. O pescador havia se voltado para recolher a rede e, por isso, não viu a cabeça calva surgir acima das ondas; não viu os pequenos corais que brilhavam nas órbitas do crânio; não viu os crustáceos nos velhos dentes de marfim. Quando ele se voltou com a rede nas mãos, o esqueleto inteiro, no estado em que estava, já havia chegado a superfície e caia suspenso da extremidade do caiaque pelos dentes incisivos.
- Ai! - gritou o homem, e o seu coração afundou até os joelhos, os seus olhos esconderam-se apavorados no fundo da cabeça e as suas orelhas arderam num vermelho forte.
- Aiii! - berrou ele, soltando-a da proa com o remo e começando a remar loucamente na direcção da terra. Sem perceber que ela estava emaranhada na sua linha, ele ficou ainda mais assustado pois ela parecia estar em pé, a persegui-lo o tempo todo até a praia. Não importava a forma como desviava o caiaque, ela continuava ali atrás. Sua respiração formava nuvens de vapor sobre a água, e seus braços se agitavam
como se quisessem agarrá-lo para levá-lo para as profundezas.
- UUUUiiiiiiiii! - uivava ele, quando o caiaque encalhou na praia. De um salto ele estava fora da embarcação e fugia agarrado à vara de pescar.
E o cadáver branco da Mulher-esqueleto, ainda preso a linha de pescar, vinha aos solavancos bem atrás dele. Ele correu pelas pedras, e ela o acompanhou. Ele atravessou a tundra gelada, e ela não se distanciou. Ele passou por cima da carne que havia deixado a secar, rachando-a em pedaços com as passadas dos seus mukluks. O tempo todo ela continuou atrás dele, na verdade até pegou um pedaço do peixe
congelado enquanto era arrastada. E logo começou a comer, porque há muito, muito tempo não se saciava. Finalmente, o homem chegou ao seu iglo, enfiou-se diretamente no túnel e, de gatas, entrou para dentro. Ofegante e soluçante, ele ficou ali deitado no escuro, com o coração parecendo um tambor, um tambor enorme. Afinal, estava seguro, ah, tão seguro, é... seguro, graças aos deuses, Raven, é, graças a Raven, é, e também a todo-generosa Sedna, em segurança, afinal. Imaginem quando ele acendeu a sua lamparina de óleo de baleia, ali estava ela - aquilo - atirada num monte no chão de neve, com um calcanhar sobre um ombro, um joelho preso nas costelas, um pé por cima do cotovelo.
Mais tarde ele não saberia dizer o que realmente aconteceu. Talvez a luz tivesse suavizado as suas feições; talvez fosse o fato de ele ser um homem solitário. Mas a sua respiração ganhou um quê de delicadeza. Bem devagar, ele estendeu as mãos encardidas e, falando baixinho como a mãe fala com o filho, começou a soltá-la da linha de pescar.
- Oh, na, na, na - Ele primeiro soltou os dedos dos pés, depois os tornozelos. Oh, na, na, na - Trabalhou sem parar noite adentro, até cobri-la de peles para aquecê-la, já que os ossos da Mulher-esqueleto eram iguaizinhos aos de um ser humano. Ele procurou a sua pederneira na bainha de couro e usou um pouco do próprio cabelo para acender mais um foguinho. Ficou a olhar para ela de vez em quando enquanto passava óleo na preciosa madeira da sua vara de pescar e enrolava novamente a sua linha de seda. E ela, no meio das peles, não pronunciava palavra - não tinha coragem - para que o caçador não a levasse lá para fora e a atirasse lá embaixo nas pedras, quebrando totalmente os seus ossos.
O homem começou a sentir sono, enfiou-se nas peles de dormir e logo estava a sonhar. Às vezes, quando os seres humanos dormem, acontece de uma lágrima escapar do olho de quem sonha. Nunca sabemos que tipo de sonho provoca isso, mas sabemos que ou é um sonho de tristeza ou de anseio. E foi isso o que aconteceu com o homem. A Mulher-esqueleto viu o brilho da lágrima à luz do fogo, e de repente ela sentiu uma sede muito grande. Ela aproximou-se do homem que dormia, rangendo e retinindo, e pôs a boca junto à lágrima. Aquela única lágrima foi como um rio, que ela bebeu, bebeu e bebeu até saciar a sua sede de tantos anos. Enquanto estava deitada ao seu lado, ela estendeu a mão para dentro do homem que dormia e retirou o seu coração, aquele tambor forte. Sentou-se e começou a batucar dos dois lados do coração: Bom, Bomm!... Bom, Bomm! Enquanto marcava o ritmo, ela começou a cantar em voz alta:
- Carne, carne, carne! Carne, carne, carne!

E quanto mais cantava, mais o seu corpo se revestia de carne. Ela cantou para ter cabelo, olhos saudáveis e mãos boas e gordas. Ela cantou para ter a divisão entre as pernas e seios compridos o suficiente para se enrolarem e dar calor, e todas as coisas de que as mulheres precisam. Quando estava pronta, ela também cantou para despir o homem que dormia e se enfiou na cama com ele, a pele de um tocando a do outro. Ela devolveu o grande tambor, o coração, ao corpo dele, e foi assim que acordaram, abraçados um ao outro,enredados na noite juntos, agora de outra forma, de uma forma boa e duradoura. As pessoas que não se conseguem lembrar de como aconteceu a sua primeira desgraça dizem que ela e o pescador foram embora e sempre foram bem alimentados pelas criaturas que ela conheceu na sua vida debaixo de água.
As pessoas garantem que é verdade e que é só isso o que sabem.

... do povo Inuit - tribo do Canadá - em Mulheres que Correm com os Lobos de Clarissa Pinkola Estées

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Homenagem aos amigos


Sexta, 6 de Junho. Um dia lindo e especial, inesperado, com palavras doces de lugares por onde passei, vivi ou simplesmente partilhei momentos. Os amigos, o meu maior bem, as minhas melhores prendas, as almas afinadas que estão espalhadas pelo mundo, cada vez menor e mais estreito: Açores, Rio, São Francisco, Sidney, Barcelona, Bruxelas... Porto. Todos aqueles de quem um dia me despedi com imensa saudade de quem tão cedo não se tornaria a ver. É tão reconfortante saber que essas almas estão presentes, ainda que as suas vidas quotidianas estejam tão longe da minha vida de todos os dias. Essa vida que partilho com a família da Vitória. Uma rara família feliz: onde nos chateamos e comemos juntos chouriços assados. Uma família de tempero italiano, com um travo lusitano. Surpreendente é também descobrir outras almas gentis, que nos fazem bolos delicados e deliciados! Parabéns aos queridos irmãos Tralha :)
Ainda bem que celebramos aniversários. Ainda bem que sonhamos em várias línguas. Que tiramos fotografias distorcidas. E que estamos presentes. Dou graças aos
amigos, palmas à sua melodia! À vossa!

domingo, 25 de maio de 2008

Vamos ao teatro :)

Convido os meus amigos para irmos ao teatro do www.fitei.com
Segunda 2: Corpos Dissidentes - Nut Teatro
Terça 3: Las que faltavan - Antonia San Juan
Sexta 6: Meu Aniversário - O Dinomáquia 2 - L'Avalot
Proponho uma pequena reunião em minha casa para comermos bolo e bebermos vinho do Porto!
Domingo 8: Orestéia - O Canto do Bode - Folias d'Arte
A minha peça de eleição: O Brasil na sua verdade grega, sempre actual, trágico e sempre o humor genuíno, infantil. A América Latina torturada e silenciada. Mas uma terra que tudo perdoa e absolve. Um Orestes divino rodeado de corpos perfeitos na sua imperfeição humana. Tudo para anoitecer a noite do meu bem e terminar com o Pierrot Apaixonado embriagado pelos limites explorados da vida.
Um milagre artístico, o êxtase na alma saciada.

sábado, 17 de maio de 2008

O sapo

Vivemos de teatro. A minha amiga estagiando no Teatro Nacional de São João, eu trabalhando como professora de línguas e como guia de visitas nas Caves de Vinho do Porto, mas dedicando todo o tempo que me resta à arte de Ser. Porque para mim o teatro é a arte do Ser. Ser autêntica dentro de mim, para os outros e em outros.
Cada vez vivo mais essa arte, cada vez sinto com maior convicção que não posso viver em harmonia sem ela. Desde sempre soube disso. Desde a infância que ela me tocou quando vivi a minha primeira personagem na 1ª classe: o gato. Mas a vida afastou-me de mim mesma e fez-me acreditar que o teatro não era para mim. E eu deixei-me ser afastada de mim por medo e insegurança. Creio que esta história é muito comum - cliché até. É a história de muita gente que devido a pré conceitos de si, não se realizou. Acredito que há muitos mais actores neste mundo do que contabilistas ou engenheiros. Mas poucos são os que têm consciência de si e decidem dar o "salto". Porque todos - ou muitos - fomos crianças um dia e brincámos.
Ontem à noite, na vinda do teatro vi um sapinho no meio da rua. Um sapinho no meio da calçada sem verde ou água, longe do seu ambiente natural. Estava perdido, sozinho, mas saltava. Saltava à procura da sua vida. Se ele parasse de saltar, concerteza deixaria de viver. É preciso saltar em direcção ao nosso lago ou charco. Em direcção a nós. Quando vi aquele sapinho senti uma ternura por ele, uma vontade de pegar nele e colocá-lo numa poça de água na berma da rua. Mas - não sei bem porquê - não o fiz. Mas sabia que ele tinha um significado especial para mim, que ele era um sinal de algo que iria acontecer ou que já está a acontecer na minha vida.
De volta a casa - madrugada já - passei perto da rua onde tinha visto o sapinho, perto do TECA, e pensei nele. Pensei nele e pensei em outros sapos que se podem transformar em príncipes e pensei no sapo do meu coração. E essa realidade, esse desejo de ver esse último, tornou-se realidade concreta e passou por mim na rua. E, abracadabra! a magia voltou a surpreender-me. E ela só acontece quando damos o salto, quando acreditamos na nossa realidade interior e a vivemos com convicção. Hoje, depois do workshop de voz com a Céu - uma actriz maravilhosa, um céu cheio de estrelas inesperadas - eu sinto que vivo cada vez mais a minha realidade interior, em qualquer lugar que esteja ou função que desempenhe. E essa realidade age sobre o quotidiano, transformando-o. Como o girino se transforma em sapo e como o sapo se transforma em príncipe... ou em algo mais interessante até, pois já não estamos em tempo de monarquia.
Saltem sapinhos!

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Adeus do coração

A razão pela qual salvei crianças do gueto de Varsóvia tem a ver com a minha infância. Fui educada a reagir, a considerar que uma pessoa que se está a afogar tem de ser salva, independentemente da sua nacionalidade ou religião.
É uma exigência ditada pelo coração.


Irena Sendler (1910-2008)

quinta-feira, 8 de maio de 2008

A Canção

Existe uma tribo na África oriental onde a arte da verdadeira intimidade é fomentada mesmo antes do nascimento. Nessa tribo, o aniversário de uma criança não é contado a partir do dia do seu nascimento físico, nem a partir do dia da sua concepção, como em outras culturas primitivas. Para essa tribo, a data do nascimento é contada a partir da primeira vez em que a criança é um pensamento na mente da mãe. Consciente da intenção de ter um filho com determinado homem, a mãe sai de casa e se senta sozinha debaixo de uma árvore. Fica sentada, atenta, até ouvir a canção do filho que ela espera conceber. Quando ouve a canção, volta para o povoado e a ensina para o pai, para que possam cantar juntos e então fazem amor, convidando a criança a se juntar a eles. Depois que a criança é concebida, ela canta para o bebê no seu ventre. Depois ensina a canção para as velhas e parteiras da tribo, para que através do trabalho de parto e do milagroso momento do nascimento a criança seja recebida com essa canção. Depois do nascimento todos os habitantes da tribo aprendem a canção do novo membro da comunidade e a cantam para a criança quando ela cai ou se machuca. A canção é cantada nos momentos de triunfo, ou nos rituais e iniciações. Essa canção torna-se parte da cerimônia do casamento quando a criança cresce e, no fim da sua vida, seus entes queridos reúnem-se em volta do seu leito de morte para cantar a canção pela última vez.

Amor e Sobrevivência, a Intimidade que Cura, de Dean Ornish

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Feios adormecidos


"Foi um horror" - diz a mulher ao jornalista. As trompas foram-lhe arrancadas contra a sua vontade, sem anestesia, porque não tinha dinheiro para pagar as suas dívidas. Assim, pagou com a sua fertilidade. Deixou de ser mulher e ser humano naquele momento.
"Algemavam-nos com algemas de ferro serrado, que cortava os pulsos, penduravam-nos pelos pés e espacanvam-nos" - chora o monge que continua a seguir a atitude pacifista de Sua Santidade.
Ontem, sentada confortavelmente em casa, assitia ao documentário no Canal 2 sobre o Tibete. E recordava com tristeza e indignação os argumentos de algumas pessoas que abordei na rua no Domingo passado, quando tentava apelar num jardim de Matosinhos, para assinarem contra a violação dos Direitos Humanos pela China:
"Eu sei menina, mas isso não me interessa" - dizia uma alma alienada.
"Ai, eu sou a favor da pena de morte. Aqui devia existir também!" - outra alma penada.
"Oh, isso é assunto deles. Eu preocupo-me com o meu país." - mais uma alma adormecida.
Que dizer destes argumentos estúpidos - porque não consigo encontrar outra palavra para tanta estupidez, tanta inconsciência, tanto egoísmo - que dizer deste país onde as pessoas continuam a viver só o seu mundo, a sua "vidinha" reduzida e limitada?
Claro, aqui também há muitos problemas. Mas o que interessa se é aqui ou no Tibete? SOMOS TODOS SERES HUMANOS. Concerteza que não nos vêm bater à porta para nos arrancarem as trompas ou para nos prenderem porque rezamos a outro Deus... mas todos os dias nos arrancam a alma com ilusões de crédito fácil e de cremes micarulosos e nós deixamos. Todos os dias nos prendem, impedem-nos de andar pelos nosso pés, impedem-nos de pensar pela nossa cabeça, impedem-nos de sentir a dor alheia com o nosso coração. E é a inconsciência, a anestesia da alma que gera todos os grandes males deste mundo. Aqui ou no Tibete.

domingo, 27 de abril de 2008

Almoço de Domingo

Soneto presente
Não me digam mais nada senão morro
aqui neste lugar dentro de mim
a terra de onde venho é onde moro
o lugar de que sou é estar aqui.
Não me digam mais nada senão falo
e eu não posso dizer eu estou de pé.
De pé como um poeta ou um cavalo
de pé como quem deve estar quem é.
Aqui ninguém me diz quando me vendo
a não ser os que eu amo os que eu entendo
os que podem ser tanto como eu.
Aqui ninguém me põe a pata em cima
porque é de baixo que me vem acima
a força do lugar que for o meu


Ary dos Santos
(na voz de Joaquim Castro Caldas)


A pata que nos põem em cima hoje tem sapatos de veludo, é leve, sedutora, mais perigosa e fatal. Faz-nos acreditar que precisamos dela, que não existimos sem ela, que somos assim como ela. A pata de hoje é magnânima, como todos os centros comerciais inúteis deste país, como todos os sumos de frutas falsamente doces, cada notícia de hipocrisia real, cada Geni torturada que mora ao nosso lado sem querermos notar a sua presença. 

 
Apesar da forte dor de cabeça - talvez por excesso de emoções - agradeço a quem disse este poema com tão acesa chama que aquece corações. E recordo que é essencial o sangue sempre fresco para continuarmos permeáveis às emoções:

Pés Vermelhos

Eu calcei os sapatos vermelhos
há muito
numa manhã de sangue
-fresco-
quiseram tirar-mos
pintá-los de negro perdido
atirá-los à escuridão perversa
dos caminhos de luzes de neón
E outros me foram oferecidos
estranhos e similares
-de verniz também-
com fitas de cetim
daquelas que enforcam
as árvores nos sonhos
-e os sonhos nas árvores-

Mas os meus pés seguiram
-entontecidos-
manchados na sua saudade
daqueles sapatos preteridos

Descalça me vi
sem flores ou lagos transparentes
por estradas
violadas
encarceradas
belas no seu excesso de amor

Mas as pegadas eram de sangue
-sempre fresco, felizmente.


Virgínia Silva

quinta-feira, 24 de abril de 2008

25 de Abril

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andressen


Amanhã há celebração na Associação de Moradores de Massarelos (Rua D.Pedro V, 2) com festa a partir das 21h30. O Rui Spranger, amigos e eu vamos ler poesia, grupos de folk vão actuar (Gaiteiros, Convinha Tradicional) e vai haver comida feita pelas avozinhas e cerveja baratinha! Apareçam :)

domingo, 20 de abril de 2008

Contemporaneidade



"És muito contemporânea!" - disse ele. Eu sinto-me deste século, desta época, mas também de outras vidas, de muitas vidas que existem cá dentro, que se cruzam, relacionam, de muitos sentimentos que se deixaram das dicotomias de amor-ódio, alegria-tristeza e adquiriram estatutos sem nome, mas com densidade e existência real. Sentimentos que foram claros para muitos que fizeram parte da minha história pessoal mais restrita, mas que são obscuros ainda para novos personagens. É como se tudo se passasse intensamente num livro cuja caligrafia foi riscada ou escrita num código por decifrar.
Sinto que tudo pode ser transformado, transfigurado, que as cores podem mudar de tonalidade e existirem em outras formas. Como a lagarta que se transforma numa borboleta, como o homem que acorda na existência de um insecto. Como a mulher que só é mulher à noite, voando durante o dia, com asas protectoras e pés que nunca tocam o chão. Na literatura resolvemos por vezes estas metamorfoses ingenuamente, com poções mágicas. Mas mesmo aí - e porque sim - sobretudo aí, as mudanças precisam sempre de uma prova de fogo, a prova que fará com que os estados humanos permaneçam ou se alterem para sempre. Como a pequena sereia que não teve coragem para matar o seu amado e preferiu continuar sereia a ser mulher muda e sem amor dentro de si. Hoje deixamos as feiticeiras e as suas poções mágicas pelos psicólogos, os diários secretos pelos blogs (in)discretos, mas mantemos inalterável a nossa cegueira. Esquecemo-nos que a nossa real imaginação, a nossa arte muda o mundo!
Sou contemporânea nessa evasão para vários caminhos possíveis e ditos livres. Mas há caminhos que, simplesmente, não interessam, e há outros que não saem de dentro de nós, mesmo quando nós saímos deles. Por isso é tão importante a visão periférica, quando conseguimos perceber os caminhos cá dentro, aquelas setas que apontam todas na mesma direcção. Então, superamos os nossos medos, seguindo-nos, deixando que o nosso corpo - o verdadeiro sábio - nos transporte. E, quando encontrarmos um monstro escondido no caminho, talvez o possamos transformar em algo surpreendentemente belo. E o milagre acontece. Avé Luciano!

quinta-feira, 17 de abril de 2008

On est pas là pour se faire engueuler

Neste momento as vozes em "ê" e em "u" dançam cá em casa. Ontem à noite ainda consegui assistir à 2ª parte do concerto com L'Herbe Folle! Um boa surpresa, estes músicos de Toulouse! Com um chapéu cheio de papelinhos com os nomes das canções, o público sorteava a próxima actuação. E, no final, o chapéu vazio voltou a encher-se da justa generosidade retribuída aos músicos. Até comprei o cd deles, uma graciosa surpresa também, se o comprarem sabem do que estou a falar :) A ver - hoje no Contagiarte, e amanhã e Sábado... não me recordo. Vejam mais em www.lherbefolle.com

quarta-feira, 16 de abril de 2008

O quarto de infância

Entrei por aquela porta castanha e desbotada da rua de S.Roque, a qual deixei de entrar há 18 anos, e passei pelos azulejos esverdeados. Abri a porta do meio e lá estavam as escadas redondas, com desenhos em espiral, em ferro beje e madeira. Subi pelas escadas azuis que a cada passo mostravam a claridade do céu a entrar sob a minha cabeça. Lado direito: o quarto ruidoso e tenebroso, a sala de fumo e ficção científica. Ao centro a escuridão musical do roupeiro, lugar de medos e sonhos. Lado esquerdo - a sinistra italiana - a magnífica casa de banho em mármore onde o Reino de Neptuno existia e... bem junto à varanda do corrimão, o lugar mágico.
A respiração alterava-se no meu corpo que queria viver tudo mais do que eu. Abri a porta e o meu coração diminuiu sem eu saber. E, assim, entre inspirações e expirações entrecortadas, apareceu o palácio de fadas e monstros, vi os filmes de papel do Zé Carioca e do Pateta, os animais selvagens e as casas LEGGO, o urso e o Capuchinho Vermelho na cama altíssima, as cassetes preciosas das explosões de riso, o magnífico espelho de transfiguração de estados de mim, a varanda para as estrelas - para o magnoreiro que crescia até às nuvens, para a Tuxa, para o pátio dos Jogos sem Fronteiras, para o telhado da Ilda, sempre protegida com aquele robe desfasado da vida lá fora. Ali estava o meu quarto. Sem medidas infantis, sem lugar aparente para a infância, mas onde a infância teve lugar. O quarto de onde fugi para a ternura quente dos trópicos, mas que me acompanhou como um passageiro clandestino cá dentro.
E, sem me avisar... ela apareceu. Ela apareceu na sua inocência de arco-íris que mostra as cores todas, mesmo aquele negro negríssimo que pensei ter apagado há anos. Afinal, ela ainda existe, ela está comigo e eu fui muito cruel para com ela. Talvez ainda mais cruel do que a vida! Não tive coragem para a enfrentar porque o encontro foi demasiado presente. Tive só vontade de a chorar como alguém chora por alguém que nos aparece à porta vinda de uma morte que não se cumpriu. Chorei. Chorei por dentro. Mais tarde, na noite do meu quarto de agora, chorei com generosidade para comigo, cheia de vontade. Cheia de saudade ... ... ...
Ela voltará certamente. Porque ela volta sempre. Mesmo sem nós a vermos, ela volta em nós. Quero dar-lhe vida na minha vida com as suas cores de outrora e com aquelas que eu vou reinventando. Porque ela é a minha verdade. A verdade mais nua e crua e - essencialmente - a mais doce.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Poemas Belos

Na ausência do Rui Spranger, estarei na sessão de poesia desta semana com outro Rui... ;)

Nomeei-te no meio dos meus sonhos
chamei por ti na minha solidão
troquei o céu azul pelos teus olhos
e o meu sólido chão pelo teu amor

Ruy Belo


Quinta, dia 17, 23h no Pinguim Café

sábado, 12 de abril de 2008

Amarelo&Azul

Foi uma semana intensa de Workshop de Movimento com o Luciano Amarelo todas as noites. Têm sido viagens cheias de experiências, detalhes, preciosidades a usar no teatro e na vida. Fiquei a saber, segundo as palavras do Luciano, que sou muito "contemporânea"... e cada vez gosto mais e sinto mais o teatro como algo que me entusiasma verdadeiramente - por ser uma arte essencialmente humana - que mexe comigo no fundo na minha barriga, ou seja, no instinto.
E hoje, fui à primeira aula do Workshop de Voz com a Maria do Céu Ribeiro! Isto promete :) Eis o texto que tive de dizer, dirigido a quem precisa de sonhar:

Receita para fazer o azul

Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas a s cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz – eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé – e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.


Nuno Júdice

quarta-feira, 9 de abril de 2008

"The forgotten Prisioners"

Em época de celebração de mais um 25 de Abril relembro a história da Amnistia Internacional, uma organização da qual sou membro activo, que teve a sua origem na nossa infeliz (aliás, como todas) ditadura.
Em 1960, dois estudantes portugueses brindavam à liberdade num restaurante de Lisboa, sem saberem que estavam a ser observados pelos olhos atentos e repressores do regime. Por este único acto, foram condenados a 7 anos de prisão. Enquanto isso, em Inglaterra um advogado lia a notícia no jornal e uma onda de indignação o invadiu. Decidiu agir com a publicação de um artigo em vários jornais ingleses intitulado "The forgotten prisioners" (Os prisioneiros esquecidos). Esta sua acção gerou uma onda de solidariedade à escala mundial através do envio de cartas, dando origem ao movimento da Amnistia Internacional.
Neste momento a AI está à procura desses estudantes - se ainda por cá andam - e eu adoraria conversar com eles, senhores de 60 e muitos anos hoje. Talvez nem se tenham apercebido das consequências que aquele brinde à liberdade provocou, das consciências que despertou, dos prisioneiros de ideais (mesmo que esses jamais possam ser aprisionados) que tem libertado neste nosso mundo, tão perverso e ao mesmo tempo, tão generoso. Vejam o vídeo (watch video) com esta história e com muitas outras mais que necessitam de ser lembradas.