terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O Ossuário da Família

"(...) era assim, Pedro, tinha corredores confusos a nossa casa, mas era assim que ele queria as coisas, ferir as mãos da família com pedras rústicas, raspar nosso sangue como se raspa uma rocha de calcário, mas alguma vez te ocorreu? alguma vez te passou pela cabeça, um instante que fosse, suspender o tampo do cesto de roupas do banheiro? alguma vez te ocorreu afundar as mãos precárias e trazer com cuidado cada peça ali jogada? era o pedaço de cada um que eu trazia nelas quando afundava as minhas mãos no cesto, ninguém ouviu melhor o grito de cada um, eu te asseguro, as coisas exasperadas da família deitadas no silêncio recatado das peças íntimas ali largadas (...)
Ninguém afundou mais as mãos ali, Pedro, ninguém sentiu mais as manchas de solidão, muitas delas abortadas com a graxa da imaginação, era preciso surpreender nosso ossuário quando a casa ressonava, deixar a cama, incursionar através dos corredores, ouvir em todas as portas as pulsações, os gemidos, e a volúpia mole dos nossos projetos de homícidio, ninguém ouviu melhor cada um em casa, Pedro, ninguém amou mais..."


André, in Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Acredito no impossível

- Por outras palavras, você acredita no impossível.

- Todos nós acreditamos, quer estejamos conscientes disso ou não. As nossas vidas não fariam sentido se não acreditássemos... basta pensar em algo como "Sonho de uma noite de verão": duendes e fadas saltitando pelo bosque, e que ao lançarem pó mágico nos olhos de um homem, ele fica logo apaixonado. É impossível, é verdade, mas isso não significa que não seja real, que não seja fiel à vida. No fim de contas, o amor é magia, não é? Ninguém sabe o que é, ninguém consegue explicá-lo. O pó mágico é uma explicação tão boa como qualquer outra, parece-me.(...)
O facto de uma história ser contada 'realisticamente' não a torna realista. E o facto de se contar uma história de um modo imaginário não a torna rebuscada. Aliás, as metáforas talvez sejam a melhor maneira de alcançar a verdade.

Paul Auster, entrevistado por Rebecca Prime sobre o filme Lulu on the bridge

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Inocência



Mas ele não estava a dizer a verdade?

A meia luz um olhar negro de sol
Entre o outrora do canto dos pássaros
E um prédio violador na época do nada

Por isso o criticaram?

Uma mãe recorrente
acaricia o ventre sem mão
o amanhã em lista de espera

Mas ele não tinha razão?

Dormir sem sonhos
Viver com vozes de partir
Assim a morte passa no cortejo

À minha porta...

Sim. Ele dizia a verdade.
Morreu com ela na boca.

Virgínia Silva



terça-feira, 27 de outubro de 2009

Da Felicidade

Quantas vezes a gente,em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão,por toda parte,os óculos procura
Tendo-os na ponta do nariz!

Mário Quintana

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

XIII Noite da Chalupa

O teatro é a poesia que se ergue das tábuas e se faz humana.

García Lorca

Este Domingo, 25 de Outubro, 17H30 no Gato Vadio

Tema: Várias vozes exteriores, uma só voz interior
Sejam todos bem - vindos!

Abraço dos vadios anfitriões Artur&Virgínia

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Bellissimo!



Para ti pai, onde quer que estejas...

Quando se sonha sozinho é apenas um sonho. Quando sonhamos juntos é o começo da realidade.

Miguel de Cervantes

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Do Profano e do Sagrado

A tarde de ontem foi muito boa. É tão bom estar e partilhar...

Avesso Bíblico


No início
já havia tudo.
Mas Deus era cego
e, perante tanto tudo,
o que ele viu foi o Nada.
Deus tocou a água
e acreditou ter criado o oceano.
Tocou o chão
e pensou que a terra nascia sob os seus pés.
E quando a si mesmo se tocou
ele se achou o centro do Universo.
E se julgou divino.
Estava criado o Homem.

Mia Couto

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

XII Noite da Chalupa


Satã, assim relegado para uma condição vagabunda, errante, instável, não tem paradeiro certo: pois embora possua, em consequência da sua natureza angélica, uma espécie de império sobre os desertos líquidos e os ares, faz certamente parte do seu castigo que ele não disponha... de qualquer lugar ou espaço físico onde descanse a planta dos pés.

Daniel Defoe, The History of the Devil

Os vadios apresentam...
XII Noite da Chalupa - agora ao fim da tarde, no jardim!

Este Domingo, 11 de Outubro, 17H30 no Gato Vadio (Rua do Rosário, 281)

Tema: O profano e... (porque não?) o sagrado
Sejam todos bem - vindos!

Abraço dos vadios anfitriões,

Artur&Virgínia

domingo, 4 de outubro de 2009

Hasta siempre querida Mercedes Sosa!



Mais uma voz da América Latina silenciou hoje. A tristeza toma conta de mim. O mundo ficou mais só. A grande maravilha, é que o cantor nunca se cala, mesmo quando o seu corpo descansa. Si se calla el cantor, calla la vida...

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

X NOITE DA CHALUPA

Mulher: Graças a Deus, mas embora delicada, a frase é imperativa. Uma pessoa vai na rua e ring the bell please. Não me vai levar a mal, mas gostava de fazer amor consigo.

(Breve silêncio).

Homem: Mas... assim de repente...deve calcular que não estou preparado... uma pessoa abordada assim... de repente... tocam à campainha, a senhora entra e de um momento para o outro e sem que nada o fizesse prever convida-me para fazer amor consigo... desculpe mas não é uma situação que me seja familiar... talvez que possamos conhecer-nos um pouco mais, conversar sobre alguns temas que sejam do nosso agrado, só para estimular um pouco o nosso encontro e depois, sim, quem sabe, talvez possamos trocar um beijo e depois...


In Além as Estrelas São a Nossa Casa, de Abel Neves

Os vadios apresentam...

X Noite da Chalupa

Uma noite domingueira, que surgiu de um encontro de palavras equivocado entre a famosa cachupa de Cabo Verde e a imaginação naive de uma vadia ao sabor do acaso.
Assim nasceu esta ideia, este espaço que se pretende que seja aberto à criação, à possibilidade de ir humanamente para além das formalidades conceituais esperadas (ai, que sono...) de uma tradicional noite de poesia.
E porque com a chalupa pensamos em comer (mesmo com a palavra do avesso) também haverá sempre uma delícia à fruição - feita pelos vadios, claro! Todos sabemos que o espírito funciona melhor depois de satisfeitos os prazeres da carne...

Este Domingo, 13 de Setembro, 22h no Gato Vadio (Rua do Rosário, 281)

Tema: Cura para a Normose


Sejam todos bem - vindos!

Abraço dos vadios,

Artur&Virgínia
e... CONVIDADOS ESPECIAIS!

domingo, 16 de agosto de 2009

Um dois, um dois, um dois!

Recomeçaram as coincidências, as magias do quotidiano, como gosto de lhes chamar. Sei lá porquê (será porque recomecei a fazer yoga? porque mudei de atitude em relação ao que me rodeia? porque viajei e logo estou sempre mais desperta?)...
Começaram em Serralves e continuaram pelas Andanças, metro dos Restauradores, túnel iniciático da Quinta da Regaleira e por ora estão em Augsburgo. Um dois, um dois, um dois!
Estas pequenas viagens em casa, por São Pedro do Sul, Lisboa, Sintra, Óbidos, Nazaré têm sido uma verdadeira dança onde todos os intervenientes vêm e vão, se encontram e se sintonizam. Mais uma vez tenho a oportunidade de conhecer pessoas que valem a pena, reencontrar amizades guardadas na gaveta, descobrir rituais importantes que quero preservar.
Regressei ao Porto. Mas, no dia seguinte já estava na Grécia antiga e depois em Augsburgo, em viagens imaginárias, tão reais e essenciais como as outras. Graças às leituras em casa do Daniel. Ler em conjunto para sentir em conjunto. E ver de múltiplas formas, dar corpo à palavra.
É preciso exercitar para estar viva... um dois, um dois, um dois!

domingo, 2 de agosto de 2009

Cos'è la bella vita?



Este belo filme de Silvano Agosti é um documentário sobre o amor, o sexo, a vida - D'Amore si vive - e é um conjunto de entrevistas, das quais faz parte também este menino. É lindo! Quando se é criança, sabemos o que é realmente essencial na vida...

sábado, 1 de agosto de 2009

Últimas palavras

- Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.

Brás Cubas, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis


Cartola também não teve filhos, mas transmitiu ao mundo a sua simplicidade, sua beleza: pariu o samba.



segunda-feira, 27 de julho de 2009

VII Noite da Chalupa

No nosso jantar de despedida, domingo à noite, surgiu a certa altura uma questão: Se nos fosse dada a oportunidade de voltarmos a viver as nossas vidas - tal e qual como as tínhamos vivido, sem a menor diferença - que faríamos nós? Aceitá-la-íamos?
Jean disse que sim. Eu disse que não.
Olhámos uma para a outra.
"O que é que isso significa?", perguntou ela.
"Tem de significar alguma coisa?", retorqui.
"Acho que sim", disse ela.
"Significa que tu gostaste da vida que viveste."
"Talvez", disse ela. "E talvez tu não dês o devido valor à vida que tiveste."
"Talvez..."
Mais tarde, erguemos as nossas taças de champanhe e brindámos ao mundo. Brindámos à nossa reunião e concluímos que fora uma bela ideia. Depois, despedimo-nos sem ilusões de nos voltarmos a ver. E com amor.

Viagens de GreyHound, in Pensei que o meu pai era Deus,
antologia de histórias organizada por Paul Auster

Ontem foi a noite de poesia dos Amigos. Esta história é especial para mim. É sobre a amizade de duas mulheres que se conhecem num autocarro, numa viagem de longa distância, algures nos Estados Unidos dos anos 30. Escrevem-se durante todas as suas vidas e só se voltam a encontrar quando são octogenárias. Também eu falei pela primeira vez com a minha amiga Ana num autocarro e posteriormente voltámos a encontrar-nos num avião. Espero voltar a reencontrá-la durante as nossas vidas. Este livro foi um presente dela. A ela dedico esta história.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

A dança da folia



O que fazer quando, vindo do nada, sentimos uma loucura oculta, um desejo profundo de vida que nunca será totalmente satisfeito numa só vida? Um desejo indomável e incompatível com o mundo que nos rodeia, com as regras impostas por essa realidade limitada a que chamamos sociedade? Uma vida não chega para tanta vida. Estamos sós nessa certeza. Estamos sós quando escolhemos o nosso caminho, sabendo que outros caminhos nos chamam também. Sentindo que a contradição, o paradoxo de existir nos acompanha. E no entanto... há tantos cúmplices silenciosos à nossa volta. Há que dançar, dançar, dançar... com sangue nos pés e folia no coração.

domingo, 19 de julho de 2009

O que é a folia?

"Il modo megliore di parlare è non parlare" - Giovanni

sábado, 11 de julho de 2009

VI Noite da Chalupa

Meu ser vive na noite e no Desejo. Minh' Alma é uma lembrança que há em mim.
Fernando Pessoa

TEMA: A Alma. Palavra caída em desuso, mas que não perdeu o seu sentido. Continuaremos este tema iniciado na última sessão... uma partilha de poesia entre amigos e poetas da vida.

Por Artur&Virgínia&Quem queira poetizar...

Amanhã, Domingo, 22h no Gato Vadio

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Estranheza

Já muitas vezes pensei que ninguém é como se imagina, que todos normalizamos a terrível estranheza da vida íntima com várias ficções convenientes. Eu não queria iludir-me, mas comprendi que sob aquela pessoa que eu acreditava ser havia uma outra, que deambulava no mundo paralelo de que Miranda falara - por ruas e casas com toda uma outra arquitectura.

Voz de Erik em The Sorrows of an American, de Siri Hustvedt

quarta-feira, 1 de julho de 2009

A nossa casa

Há tempos, em Lisboa, vi uma exposição de fotografia intitulada A Terra Vista do Céu. Na altura, fiquei impressionada pela beleza das imagens e a geometria natural do nosso mundo. Fui logo investigar sobre a vida e arte do fotógrafo e descobri trabalhos surpreendentes. Agora, do mesmo autor, surge este filme - fascinante e perturbador - sobre a nossa casa. Aquela que menos cuidamos, mais desconhecemos e onde vivemos. Vale a pena ver e olhar à nossa volta:

HOME, by Yann Arthus Bertrand


Já dizia Osho que, se cada acto nosso fosse consciente, muitos actos deixariam de existir...

segunda-feira, 29 de junho de 2009

V Noite da Chalupa

Éramos oito almas presentes e uma de passagem. Uma noite íntima, entre poetas da vida. Uma surpresa, o Anónimo do Século XXI...

Eu

Sou a que no mundo anda perdida
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada, a dolorida...

Sombra de névoa tênue e esvaecida
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte;
Alma de luto sempre incompreendida!

Sou aquela que passa e ninguém vê.....
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!


Florbela Espanca

domingo, 28 de junho de 2009

Avelina

Abriu os olhos
para a lua
na pedra fria
da madrugada

Vejo-a, nua
de máscara carmim
e carvão
a habitar silêncios
uterinos do quotidiano

Seu perfil é hirto
Seu papel lânguido
e nele desagua
uma carícia inesperada

À Avelina, uma ave linda

sábado, 27 de junho de 2009

Pena de Vida

Dói-me a espera na sombra.
Dói-me a vontade de estar contigo.

Tu és o culpado - brilhas em mim.


sexta-feira, 26 de junho de 2009

Do silêncio que não diz


O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons...


Martin Luther King

O silêncio é precioso, de "ouro" como diz a sabedoria popular, pode ser de uma beleza e paz extremas quando partilhado entre amantes ou seres que navegam num mar comum. O silêncio impede que as palavras corrompam os sentimentos mais profundos e cristaliza os momentos dos quais nos lembraremos antes da viagem para o além-mundo. O silêncio suaviza dores e intensifica amores.
Contudo, o silêncio pode funcionar exactamente ao contrário, se for mantido em situações de injustiça e crueldade: pode acentuar dores e deixar que os ódios continuem a existir. Se continuarmos a calar a nossa voz quando presenciamos situações de preconceito, violência gratuita, invasão da liberdade do outro... estaremos condenados à solidão. E condenando-nos a nós e à nossa consciência, sentenciamos o mundo que nos rodeia à mesma solidão.
Eis um caso que pode ocorrer em qualquer lugar, com qualquer um de nós, resolvido com inteligência e sensibilidade: O Silêncio dos Bons.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Fantasmas silenciosos

Suponho que todos temos fantasmas dentro de nós, e é preferível que falem do que não o façam. Depois de o meu pai morrer nunca mais pude falar-lhe pessoalmente, mas não deixei de ter conversas com ele na minha cabeça. Não deixei de o ver nos meus sonhos nem de ouvir as suas palavras. Ainda assim, foi o que o meu pai não disse que durante uns tempos tomou conta da minha vida - o que não nos disse. Acabou por não ser a única pessoa a ter segredos.


Voz de Erik em The Sorrows of an American, de Siri Hustvedt

terça-feira, 16 de junho de 2009

Velha Bela Velha

Esta madrugada, após a leitura fulgurante de O Silêncio dos Amantes, de Lya Luft, apareceu-me esta mulher:

Uma Velha
muito bela
Velha

de vestes de luar vermelho
caminha sob o
chão de cetim

onde os sonhos se gastam
desgastam
em murmúrios de tempo
perdido
ou ignorado

Essa Velha
muito bela
 muito velha

sabe mais do que eu

viveu os mesmo anos
sem relógio

aqueceu o corpo
nas mesmas madrugadas
de fogo e fel

mas sabe mais do que eu...

Ela caminha
para a morte
dos dias quotidianos
silenciosos
sinistros, prenhos de normalidade

Ela tem conversas animadas
com os fantasmas

de sempre

E percorre os campos
sem fim
que nela foram implantados
desde há muito

Neles voa com as borboletas -
amigas que espera
na certeza de cada manhã.

Virgínia Silva

segunda-feira, 15 de junho de 2009

IV Noite da Chalupa: 7 Sóis & 7 Luas

Deitaram-se. Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou Baltazar, e Blimunda respondeu, Dezanove anos, mas já então se tornara muito mais velha. Correu algum sangue sobre a esteira. Com as pontas dos dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltazar, sobre o coração. Estavam ambos nus. Numa rua perto ouviram vozes de desafio, bater de espadas, correrias. Depois o silêncio. Não correu mais sangue.

José Saramago, in Memorial do Convento

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Um brinquedo só

Lenny, a criança de um brinquedo só, tão feliz no colo de sua mãe, minha amiga Marleen... também eu quero criar uma família assim, que não está corrompida pela ilusão do consumismo infantil, que tenta preencher a ausência de criatividade e amor.
O drama na minha infância, tornou-a triste e feliz ao mesmo tempo. Povoou-a de personagens de livros e brincadeiras inocentes, a maioria das vezes, inventadas por nós. Se se perde o imaginário, a arte, perde-se a aventura da vida. E se a vida deixa de ser um caminho surpreendente... também tu te perdes.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Canção de ninar na noite imensa e misteriosa da Bahía

Noiva. Antes que ela aparecesse ele nunca pensara nesta palavra: noiva. Gostava de derrubar negrinhas no areal. De encostar peito com peito, cabeça com cabeça, pernas com pernas, sexo com sexo. Mas nunca pensara em deitar na areia ao lado de uma menina, menina como ele, e conversar de coisas tolas e comer picula como os outros meninos, sem a derrubar para fazer o amor. Era outra maneira do amor, pensava numa confusão. Ele nunca tivera uma ideia perfeita do amor. Que era ele senão uma criança abandonada nas ruas, que pela força e agilidade e coragem conseguira chefiar o grupo mais valente de meninos abandonados, os Capitães da Areia? Que podia saber do amor? (...)
Noiva. Gostaria sim. Mesmo quando quer negar a si próprio não pode. É verdade que nada faz para isso, que se contenta de conversar com ela, de ouvir a sua voz, pegar timidamente na sua mão. Mas gostaria de possuí-la também, de vê-la gemer de amor. Não, porém, por uma noite. Por todas as noites de toda uma vida.

Voz de Pedro Bala, in Capitães da Areia, de Jorge Amado

Acabei o livro do Amado. As crianças (mal) amadas da Bahía ficarão para sempre dentro de mim, sendo ninadas na sua noite escura...

terça-feira, 2 de junho de 2009

Viagem de carrossel

Depois vai o Sem Pernas. Vai calado, uma estranha comoção o possui. Vai como um crente para uma missa, um amante para o seio da mulher amada, um suicida para a morte. Vai pálido e coxeia. Monta um cavalo azul que tem estrelas pintadas no lombo de madeira. Os lábios estão apertados, seus ouvidos não ouvem a música da pianola. Só vê as luzes que giram com ele e prende em si a certeza de que está num carrossel, girando num cavalo como todos aqueles meninos que têm pai e mãe, e uma casa e quem os beije e quem os ame. Pensa que é um deles e fecha os olhos para guardar melhor esta certeza. Já não vê os soldados que o surraram, o homem de colete que ria. Volta Seca os matou na sua corrida. O Sem Pernas vai teso no seu cavalo. É como se corresse sobre o mar para as estrelas, na mais maravilhosa viagem do mundo. Uma viagem como o Professor nunca leu nem inventou. Seu coração bate tanto, tanto , que ele o aperta com a mão.

Jorje Amado, in Capitães da Areia

A cada página o meu coração também bate cada vez com mais ternura e indignação. Um dia após se ter celebrado o dia da Criança, que é a cada momento esquecido, o meu desejo imenso é que todos os Capitães da Areia, que se estendem desoladamente por este mundo, possam viajar para sempre num carrossel como este. E nele iluminar a sua noite escura...

segunda-feira, 1 de junho de 2009

III Noite da Chalupa

Vaza-me os olhos: continuarei a ver-te,
Tapa-me os ouvidos: continuarei a ouvir-te,
Mesmo sem pés chegarei a ti,
Mesmo sem boca poderei evocar-te.
Decepa-me os braços: poderei abraçar-te
Com o coração, como se fosse a mão.
Arranca-me o coração: palpitarás no meu cérebro.
E se me incendiares o cérebro,
Levar-te-ei no meu sangue.

R. Maria Rilke

Talvez devido à festa em Serralves, na qual também participei, ontem a noite foi mais íntima e despida - gostei!

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Continuar o caminho...

De um amigo viajante pelo mundo:

Se algum dia te apaixonares, não te iludas, pois o universo esconde infinitas paixões e só quando tudo conseguirmos abandonar – o que amamos e o que não amamos, então o universo apaixonar-se-á por nós.

Este é o teu poema


Feito de pedaços,

De lábios, cabelos e abraços.

Em sono desfeito, cozinhados,

Na luz da tempestade, temperados.

Um trovão, uma luz, uma aparição,

O teu olhar, o beijo, a minha perdição,

Por ter sido cobarde, por ter dito tão tarde,

O quanto o meu coração arde, o quanto o meu coração arde.

E agora me exponho,

Emerso na solidão,

Que tudo não passou de um sonho,

De uma noite em vão.

Aqui a coberto,

Do outro lado do mundo,

Espero por ti, enganado,

Como um cão abandonado.

E uivo sem fim,

Lobo,

Dingo,

Louco em frenesim!

Ai venenosa vontade,

De te ver nua em cada tarde!

Não voltarei nunca a faze-lo

A sonhar cheio de zelo,

Por uma mão cheia do teu cabelo.

Por um luar cheio do teu andar,

Por uma maré sempre a transbordar,

Com teu olhar, azul do mar.

Não e fácil saber amar.


Mornington, Austrália - Fevereiro de 2009

ZP - O astronauta do pedacinho do céu

domingo, 24 de maio de 2009

Olha que mocinho boniiiito!



A Bossa do Sérginho agradou-me imenso e, como ele cantou várias canções de um dos artistas que mais admiro, aqui vai uma interpretação preciosa, num tempo de ditadura militar no Brasil, mas, como em todos os tempos de grilhões, de glória nos corações. Olha a emoção na audiência e até no júri... esta canção é poderosa! E ele, lindo de morrer, apenas com 23 anos, já tinha ganho prémios, conhecido a Marieta, seu amor e escrevia peças de teatro. Tanto talento... contudo, era tímido!

sábado, 23 de maio de 2009

Prêt-a-porter - último dia no TNSJ!

Eu sou uma pessoa, como dizem aí, daquelas felizes, sabe, daquelas que chamam 'timistas. Tem hora que não é assim, mas a gente tem de estar aqui mesmo... melhor estar bem do que mal.

Ontem não tinha muitas palavras quando saí do teatro. O meu coração pulsava, o meu sangue circulava com mais energia e eu sentia-me quente. Estas foram as reacções do meu corpo ao espectáculo que nos chegou do outro lado do oceano.
A pequena cena, a intimidade na abordagem, a criatividade dos actores, a vontade de estar ali...tudo tão simples e tão lindo!

sexta-feira, 22 de maio de 2009

O amor luminoso do sertão :)



Minha Feia, que na verdade é linda, deu-me a ideia de publicar aqui também esta poesia. O amor é mesmo do coração e não das palavras eruditas.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

O Sonho

Só o verdadeiro poeta pode dizer o que é o infinito desejo de não ser poeta, o que é o desejo de abandonar esta casa de espelhos, onde reina um silêncio ensurdecedor.

Exilado das regiões do sonho
Procuro abrigo na multidão
E quero em insultos
Transformar o meu canto

Milan Kundera citando Frantisek Halas, in "A Vida não é aqui"

domingo, 17 de maio de 2009

A Noite da Chalupa

Começamos hoje!
O TRIO VADIO apresenta...

Uma noite domingueira, cujo nome surgiu de um encontro de palavras equivocado entre a famosa cachupa de Cabo Verde e a imaginação naive de uma vadia que, ao sabor do acaso, navegou para outros significados.
Assim nasceu esta ideia, este espaço que se pretende que seja aberto à criação, à possibilidade de ir humanamente para além das formalidades conceituais esperadas (ai, que sono...) de uma tradicional noite de poesia.
E porque com a chalupa pensamos em comer (mesmo com a palavra do avesso) também haverá sempre uma delícia à fruição - feita pelos vadios, claro! Todos sabemos que o e espírito funciona melhor depois de satisfeitos os prazeres da carne...

1ª Sessão - Hoje, Domingo 17, no Gato Vadio, 22h
(Rua do Rosário, 281)

com o tema: O Sonho
textos de:

José Maria Vieira Mendes
, Jean Genet, Anton Tchékhov, Eugene O'Neill,
Lucien, Lambert
, Arthur Schnitzler, Allen Ginsberg, D.H. Lawrence, Emily Brontë, William Shakespeare, Fernando Pessoa, Vinicius de Morais, Milan Kundera,Teolinda Gersão

e vozes de: Artur Silva, Rita Figueiredo, Virgínia Silva

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Meu coração, não sei porquê...

O amor é uma festa. É uma celebração diária. É a fragilidade nua, o peito aberto. É o cafuné e o ninar com canções ao ouvido, mesmo com a voz de cana rachada. É o conforto do hábito e o bater do coração da surpresa. É perder-se e (re)encontrar-se, a pele e a alma do avesso.
As estrelas só brilham porque a noite é escura.
No meio destas reflexões, uma ambivalência cresce dentro de mim. E este belo chorinho, composto pelo grande músico Pixinguinha, traduz essa voz melhor do que eu.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

"Toca Klezmer, até as cordas dos violinos se partirem!"

Uma deliciosa mistura de sons judaicos e ciganos vinda dos esconderijos da alma, sabe-se lá de onde... Obrigada querida Marleen!

Ouçam os DIKANDA, a minha música preferida é Jakhana Jakhana! Para dançar até sentir tudo:
http://lebowski.hosted.pl/dikanda/english/mp3.htm

Inté sempre, companheiro!



Ausentei-me do mundo político-social por uns dias, vivendo apenas uma existência individual. Enquanto isso, este mundo despedia-se de Augusto Boal, fundador do Teatro do Oprimido. Um ser que admiro, fiel aos seus ideais até à hora em que, simplesmente, deixou de respirar...

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Na terra das sibilantes

Um manto de estrelas no céu iluminava a escuridão de granito da aldeia. O javali, a coruja, o cuco tomavam parte no cântico que acompanhava a madrugada à aurora.
De noite as vozes da floresta, de dia o silêncio das pedras dos mosteiros perdidos. Almas profanas e sagradas moraram ali... Quantos Baltazares lá terão deixado pedaços de si e quantas Blimundas terão velado o seu desaparecimento...
O meu corpo regressou, dengoso, após longos banhos públicos nas águas quentes e doces do rio. Dizem que quando viajamos o nosso espírito demora mais tempo a voltar... só xegou hoje da Galiza!


quinta-feira, 30 de abril de 2009

Afinal, não estou só!


Com almas como a tua neste pequeno universo, nunca posso perder-me de mim mesma...

terça-feira, 28 de abril de 2009

A princesinha do mar



Que bom que o Riccardo trouxe a Maria com um pouco de Brasil e comemos farofa de linguicinha com licor de baru! O meu coração ficou "levinho"... Fica a presença do meu lar principesco à beira-mar, onde (in)felizmente tudo acontece.

sábado, 25 de abril de 2009

Último Desejo



Nosso amor não acontece... É uma chama oprimida, um atirando madeira, o outro, água. Tenho saudades do amor genuíno, que toca à campainha de surpresa, sem telefonar antes. Que faz serenata até para dizer adeus. Daquele amor apaixonado, onde o tempo tem sempre tempo, onde os desejos últimos se concretizam, ausente de palavras supérfluas.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Minha Oração

Ó Véspera do Prodígio! - IV

Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.

Natália Correia

Ámen.
Hoje, Revolução Sexual, no Bar Rosa Escura (Rua da Picaria, 32), 23h.