segunda-feira, 29 de junho de 2009

V Noite da Chalupa

Éramos oito almas presentes e uma de passagem. Uma noite íntima, entre poetas da vida. Uma surpresa, o Anónimo do Século XXI...

Eu

Sou a que no mundo anda perdida
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada, a dolorida...

Sombra de névoa tênue e esvaecida
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte;
Alma de luto sempre incompreendida!

Sou aquela que passa e ninguém vê.....
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!


Florbela Espanca

domingo, 28 de junho de 2009

Avelina

Abriu os olhos
para a lua
na pedra fria
da madrugada

Vejo-a, nua
de máscara carmim
e carvão
a habitar silêncios
uterinos do quotidiano

Seu perfil é hirto
Seu papel lânguido
e nele desagua
uma carícia inesperada

À Avelina, uma ave linda

sábado, 27 de junho de 2009

Pena de Vida

Dói-me a espera na sombra.
Dói-me a vontade de estar contigo.

Tu és o culpado - brilhas em mim.


sexta-feira, 26 de junho de 2009

Do silêncio que não diz


O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons...


Martin Luther King

O silêncio é precioso, de "ouro" como diz a sabedoria popular, pode ser de uma beleza e paz extremas quando partilhado entre amantes ou seres que navegam num mar comum. O silêncio impede que as palavras corrompam os sentimentos mais profundos e cristaliza os momentos dos quais nos lembraremos antes da viagem para o além-mundo. O silêncio suaviza dores e intensifica amores.
Contudo, o silêncio pode funcionar exactamente ao contrário, se for mantido em situações de injustiça e crueldade: pode acentuar dores e deixar que os ódios continuem a existir. Se continuarmos a calar a nossa voz quando presenciamos situações de preconceito, violência gratuita, invasão da liberdade do outro... estaremos condenados à solidão. E condenando-nos a nós e à nossa consciência, sentenciamos o mundo que nos rodeia à mesma solidão.
Eis um caso que pode ocorrer em qualquer lugar, com qualquer um de nós, resolvido com inteligência e sensibilidade: O Silêncio dos Bons.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Fantasmas silenciosos

Suponho que todos temos fantasmas dentro de nós, e é preferível que falem do que não o façam. Depois de o meu pai morrer nunca mais pude falar-lhe pessoalmente, mas não deixei de ter conversas com ele na minha cabeça. Não deixei de o ver nos meus sonhos nem de ouvir as suas palavras. Ainda assim, foi o que o meu pai não disse que durante uns tempos tomou conta da minha vida - o que não nos disse. Acabou por não ser a única pessoa a ter segredos.


Voz de Erik em The Sorrows of an American, de Siri Hustvedt

terça-feira, 16 de junho de 2009

Velha Bela Velha

Esta madrugada, após a leitura fulgurante de O Silêncio dos Amantes, de Lya Luft, apareceu-me esta mulher:

Uma Velha
muito bela
Velha

de vestes de luar vermelho
caminha sob o
chão de cetim

onde os sonhos se gastam
desgastam
em murmúrios de tempo
perdido
ou ignorado

Essa Velha
muito bela
 muito velha

sabe mais do que eu

viveu os mesmo anos
sem relógio

aqueceu o corpo
nas mesmas madrugadas
de fogo e fel

mas sabe mais do que eu...

Ela caminha
para a morte
dos dias quotidianos
silenciosos
sinistros, prenhos de normalidade

Ela tem conversas animadas
com os fantasmas

de sempre

E percorre os campos
sem fim
que nela foram implantados
desde há muito

Neles voa com as borboletas -
amigas que espera
na certeza de cada manhã.

Virgínia Silva

segunda-feira, 15 de junho de 2009

IV Noite da Chalupa: 7 Sóis & 7 Luas

Deitaram-se. Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou Baltazar, e Blimunda respondeu, Dezanove anos, mas já então se tornara muito mais velha. Correu algum sangue sobre a esteira. Com as pontas dos dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltazar, sobre o coração. Estavam ambos nus. Numa rua perto ouviram vozes de desafio, bater de espadas, correrias. Depois o silêncio. Não correu mais sangue.

José Saramago, in Memorial do Convento

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Um brinquedo só

Lenny, a criança de um brinquedo só, tão feliz no colo de sua mãe, minha amiga Marleen... também eu quero criar uma família assim, que não está corrompida pela ilusão do consumismo infantil, que tenta preencher a ausência de criatividade e amor.
O drama na minha infância, tornou-a triste e feliz ao mesmo tempo. Povoou-a de personagens de livros e brincadeiras inocentes, a maioria das vezes, inventadas por nós. Se se perde o imaginário, a arte, perde-se a aventura da vida. E se a vida deixa de ser um caminho surpreendente... também tu te perdes.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Canção de ninar na noite imensa e misteriosa da Bahía

Noiva. Antes que ela aparecesse ele nunca pensara nesta palavra: noiva. Gostava de derrubar negrinhas no areal. De encostar peito com peito, cabeça com cabeça, pernas com pernas, sexo com sexo. Mas nunca pensara em deitar na areia ao lado de uma menina, menina como ele, e conversar de coisas tolas e comer picula como os outros meninos, sem a derrubar para fazer o amor. Era outra maneira do amor, pensava numa confusão. Ele nunca tivera uma ideia perfeita do amor. Que era ele senão uma criança abandonada nas ruas, que pela força e agilidade e coragem conseguira chefiar o grupo mais valente de meninos abandonados, os Capitães da Areia? Que podia saber do amor? (...)
Noiva. Gostaria sim. Mesmo quando quer negar a si próprio não pode. É verdade que nada faz para isso, que se contenta de conversar com ela, de ouvir a sua voz, pegar timidamente na sua mão. Mas gostaria de possuí-la também, de vê-la gemer de amor. Não, porém, por uma noite. Por todas as noites de toda uma vida.

Voz de Pedro Bala, in Capitães da Areia, de Jorge Amado

Acabei o livro do Amado. As crianças (mal) amadas da Bahía ficarão para sempre dentro de mim, sendo ninadas na sua noite escura...

terça-feira, 2 de junho de 2009

Viagem de carrossel

Depois vai o Sem Pernas. Vai calado, uma estranha comoção o possui. Vai como um crente para uma missa, um amante para o seio da mulher amada, um suicida para a morte. Vai pálido e coxeia. Monta um cavalo azul que tem estrelas pintadas no lombo de madeira. Os lábios estão apertados, seus ouvidos não ouvem a música da pianola. Só vê as luzes que giram com ele e prende em si a certeza de que está num carrossel, girando num cavalo como todos aqueles meninos que têm pai e mãe, e uma casa e quem os beije e quem os ame. Pensa que é um deles e fecha os olhos para guardar melhor esta certeza. Já não vê os soldados que o surraram, o homem de colete que ria. Volta Seca os matou na sua corrida. O Sem Pernas vai teso no seu cavalo. É como se corresse sobre o mar para as estrelas, na mais maravilhosa viagem do mundo. Uma viagem como o Professor nunca leu nem inventou. Seu coração bate tanto, tanto , que ele o aperta com a mão.

Jorje Amado, in Capitães da Areia

A cada página o meu coração também bate cada vez com mais ternura e indignação. Um dia após se ter celebrado o dia da Criança, que é a cada momento esquecido, o meu desejo imenso é que todos os Capitães da Areia, que se estendem desoladamente por este mundo, possam viajar para sempre num carrossel como este. E nele iluminar a sua noite escura...

segunda-feira, 1 de junho de 2009

III Noite da Chalupa

Vaza-me os olhos: continuarei a ver-te,
Tapa-me os ouvidos: continuarei a ouvir-te,
Mesmo sem pés chegarei a ti,
Mesmo sem boca poderei evocar-te.
Decepa-me os braços: poderei abraçar-te
Com o coração, como se fosse a mão.
Arranca-me o coração: palpitarás no meu cérebro.
E se me incendiares o cérebro,
Levar-te-ei no meu sangue.

R. Maria Rilke

Talvez devido à festa em Serralves, na qual também participei, ontem a noite foi mais íntima e despida - gostei!