domingo, 20 de abril de 2008

Contemporaneidade



"És muito contemporânea!" - disse ele. Eu sinto-me deste século, desta época, mas também de outras vidas, de muitas vidas que existem cá dentro, que se cruzam, relacionam, de muitos sentimentos que se deixaram das dicotomias de amor-ódio, alegria-tristeza e adquiriram estatutos sem nome, mas com densidade e existência real. Sentimentos que foram claros para muitos que fizeram parte da minha história pessoal mais restrita, mas que são obscuros ainda para novos personagens. É como se tudo se passasse intensamente num livro cuja caligrafia foi riscada ou escrita num código por decifrar.
Sinto que tudo pode ser transformado, transfigurado, que as cores podem mudar de tonalidade e existirem em outras formas. Como a lagarta que se transforma numa borboleta, como o homem que acorda na existência de um insecto. Como a mulher que só é mulher à noite, voando durante o dia, com asas protectoras e pés que nunca tocam o chão. Na literatura resolvemos por vezes estas metamorfoses ingenuamente, com poções mágicas. Mas mesmo aí - e porque sim - sobretudo aí, as mudanças precisam sempre de uma prova de fogo, a prova que fará com que os estados humanos permaneçam ou se alterem para sempre. Como a pequena sereia que não teve coragem para matar o seu amado e preferiu continuar sereia a ser mulher muda e sem amor dentro de si. Hoje deixamos as feiticeiras e as suas poções mágicas pelos psicólogos, os diários secretos pelos blogs (in)discretos, mas mantemos inalterável a nossa cegueira. Esquecemo-nos que a nossa real imaginação, a nossa arte muda o mundo!
Sou contemporânea nessa evasão para vários caminhos possíveis e ditos livres. Mas há caminhos que, simplesmente, não interessam, e há outros que não saem de dentro de nós, mesmo quando nós saímos deles. Por isso é tão importante a visão periférica, quando conseguimos perceber os caminhos cá dentro, aquelas setas que apontam todas na mesma direcção. Então, superamos os nossos medos, seguindo-nos, deixando que o nosso corpo - o verdadeiro sábio - nos transporte. E, quando encontrarmos um monstro escondido no caminho, talvez o possamos transformar em algo surpreendentemente belo. E o milagre acontece. Avé Luciano!

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