quarta-feira, 16 de abril de 2008

O quarto de infância

Entrei por aquela porta castanha e desbotada da rua de S.Roque, a qual deixei de entrar há 18 anos, e passei pelos azulejos esverdeados. Abri a porta do meio e lá estavam as escadas redondas, com desenhos em espiral, em ferro beje e madeira. Subi pelas escadas azuis que a cada passo mostravam a claridade do céu a entrar sob a minha cabeça. Lado direito: o quarto ruidoso e tenebroso, a sala de fumo e ficção científica. Ao centro a escuridão musical do roupeiro, lugar de medos e sonhos. Lado esquerdo - a sinistra italiana - a magnífica casa de banho em mármore onde o Reino de Neptuno existia e... bem junto à varanda do corrimão, o lugar mágico.
A respiração alterava-se no meu corpo que queria viver tudo mais do que eu. Abri a porta e o meu coração diminuiu sem eu saber. E, assim, entre inspirações e expirações entrecortadas, apareceu o palácio de fadas e monstros, vi os filmes de papel do Zé Carioca e do Pateta, os animais selvagens e as casas LEGGO, o urso e o Capuchinho Vermelho na cama altíssima, as cassetes preciosas das explosões de riso, o magnífico espelho de transfiguração de estados de mim, a varanda para as estrelas - para o magnoreiro que crescia até às nuvens, para a Tuxa, para o pátio dos Jogos sem Fronteiras, para o telhado da Ilda, sempre protegida com aquele robe desfasado da vida lá fora. Ali estava o meu quarto. Sem medidas infantis, sem lugar aparente para a infância, mas onde a infância teve lugar. O quarto de onde fugi para a ternura quente dos trópicos, mas que me acompanhou como um passageiro clandestino cá dentro.
E, sem me avisar... ela apareceu. Ela apareceu na sua inocência de arco-íris que mostra as cores todas, mesmo aquele negro negríssimo que pensei ter apagado há anos. Afinal, ela ainda existe, ela está comigo e eu fui muito cruel para com ela. Talvez ainda mais cruel do que a vida! Não tive coragem para a enfrentar porque o encontro foi demasiado presente. Tive só vontade de a chorar como alguém chora por alguém que nos aparece à porta vinda de uma morte que não se cumpriu. Chorei. Chorei por dentro. Mais tarde, na noite do meu quarto de agora, chorei com generosidade para comigo, cheia de vontade. Cheia de saudade ... ... ...
Ela voltará certamente. Porque ela volta sempre. Mesmo sem nós a vermos, ela volta em nós. Quero dar-lhe vida na minha vida com as suas cores de outrora e com aquelas que eu vou reinventando. Porque ela é a minha verdade. A verdade mais nua e crua e - essencialmente - a mais doce.

1 comentário:

almas disse...

"A ingenuidade é o legítimo segredo de cada qual, é a sua verdadeira idade, é o seu próprio sentimento livre, é a alma do nosso corpo, é a própria luz de toda a nossa resistência moral".

Almada Negreiros