domingo, 22 de fevereiro de 2009

Do silêncio que diz

Ontem alguém me lembrou o meu primeiro amor poético, namorado em muitas tardes na biblioteca em São Lázaro, ainda na minha adolescência. Um amor absorvido com paixão naqueles velhos ficheiros amarelados e caóticos. Tudo que havia para ler ali li, textos de si, para si, para os outros e para o mundo. De mação a político, de religioso a monárquico, de esquizofrénico a génio... tudo já se escreveu sobre ele. Eu só sinto que a sua fragilidade era imensa, logo a sua humanidade ilimitada. Daí o nosso interesse por ele, por aquele empregado de escritório ridiculamente apaixonado que detestava viajar. Sim, viajar para quê? Se ele tinha lugares sempre por explorar dentro de si! Fragmentado, louco, místico... sempre a nossa mania de adjectivar. E sempre a impossibilidade de traduzir por palavras aquilo que nos ultrapassa, que nunca ousamos experienciar.

Como o Mestre, que para mim sempre foi Pessoa no seu drama mais profundo, tenho grande dificuldade de dizer o que sinto intensamente por palavras. É tão mais fácil com o olhar, com a pulsação cá dentro, com os girassóis. A grande questão é que poucos se recordam dessa linguagem ancestral, do silêncio que diz.

Regresso 

Voltei a escrever
em guardanapos
em papel fino e delicado
para uso dos lábios
universo do nosso vício

Voltei a olhar para o
tecto, a barreira ilusória de um
céu há muito desacreditado

Volto a poetisar
agora sem grandes
metáforas, a minha
figura mais longe
de qualquer mundo

Música
Poesia
Corpos...
já não sei fazer uso das
palavras como dantes

Agora faço poesia
com os silêncios
sentados à mesa
de um café de
turistas.

Virgínia Silva
(Café da Brasileira, Lisboa 2005)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Estrelas no cabelo e sol no coração

Ia a menina a passar na ponte
-que já afogou muitas meninas-
quando o viu e logo se apaixonou
-ele tinha o coração negro
e o olhar puro-

Então, a mulher disse-lhe
que ela tinha crescido
que estava fora do seu tempo
e das suas medidas
e que "a vida é mesmo assim"

Mas a menina não a ouve.
A menina sente.
Continua a chorar por dentro
a pôr estrelas no cabelo
e sol no coração.

Virgínia Silva

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Ai de quem não rasga o coração...

Quando eu morrer, não quero choro nem vela
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela

A onda de nostalgia do Brasil foi desencadeada pelo Cabaré da Santa. E ontem o Poeta da Vila soprou-me ao ouvido um dos seus sambas despertando aquele amor adormecido que um dia, por casualidade, se encontra na rua. Aquele que me diz que o meu caminho é outro e que tenho de ser mais honesta comigo.

Estou tristemente na peça errada, a interpretar uma personagem que não é. Preciso de ser linda outra vez, com estrelas no cabelo e sol no coração. O desejo tem de vencer o medo.

Como dizia o poeta
Quem já passou por essa vida e não viveu
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá pra quem se deu
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Dia do Amor

Já que precisamos de um dia do amor, para não nos esquecermos dele... Muitos oferecem perfumes, peluches piegas, jantares à luz de velas... eu gosto de oferecer poemas. Aqui vão dois que escrevi em momentos mágicos. Para que a magia regresse e inunde tudo e todos...


Arcaico Desejo
Entre a folhagem
emerge o sangue
nos cabelos
nariz
lábios
vulva

início e fim
impulso e paciência
na dança
lenta
lânguida

passos desnudos
e o branco
aquele fiel perverso
livre do tempo

As mãos vivem
a doce
violência
da paixão

Os olhos iluminam-se
ao sabor
do vinho
antigo

A escuridão vital
impõe-se
e as janelas
abrem-se
de par em par.


(Rio 2001, inspirado no belo filme "Lavoura Arcaica")Itálico


Eclipse de Sangues

Num espaço
compartido
partilhado
?
encantado

organismos vivos
teorias poesias
assentam
na mesa

Os sete sóis
e
as sete luas
cruzam-se
com a forma redonda

desde sempre
e
para sempre

No horizonte
um pôr do sol vertical
um infinito molecular
de palavras mudas
desaprendidas
num universo sem nome

Sem palavras
Oxalá!
Poemas teoremas
Vivências
Cadências
estrelas em mim
se apagam

e a cor do teu sangue
anoitece no calor do meu.

(Lisboa 2005, no café onde Pessoa passou muitas tardes)

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

A Vintena Vadia está a apresentar: Boca na Terra!

Era uma vez um velho casal de lavradores, um pescador, uma mulher, uma madrasta, uma velha avarenta, que vivia numa pequena aldeia e tinha uma filha, que tinha três filhas, que tinha muitos filhos. A mãe morreu e o pai, passado algum tempo, quis casar-se com a rapariga mais bonita da aldeia. A filha estava para casar e na véspera do casamento os pais deram um jantar ao noivo. Logo que se casaram a mulher começou a tratar mal a filha.

Após noites geladas de ensaios no Museu do Carro Eléctrico, o nosso espectáculo está a querer dar uns ares da sua graça... não é ainda o espectáculo final, é o "Work in Progress", e pretende despertar a curiosidade e a imaginação do público para estar presente na sua estreia a 5 de Março no Museu do Carro Eléctrico.
Por agora, vamos apresentar, por sorte, na Sexta Feira 13 e no Sábado Amoroso 14 de Fevereiro, no Contagiarte. Venham lá espreitar!

domingo, 1 de fevereiro de 2009

A máquina da felicidade

De partida. Já há algum tempo que estou de partida. Tudo dentro da mesma cidade, apenas em espaços e com pessoas diferentes. Esta questão sempre me acompanhou, sempre adorei aeroportos que me levassem para fora desta cidade tão castradora e nublada. Nunca me senti muito em casa aqui. E parti: para os trópicos, para as montanhas místicas dos Maias e Azetecas (e muitos mais "-ecas" que desconhecia!), para os Happy and Free States. É mesmo verdade que a vida corre a um outro ritmo no Rio de Janeiro ou em São Francisco. As pessoas divertem-se mais, fazem mais amor (?) e não se riem ou criticam coisas tão mesquinhas como o penteado de alguém ou a combinação de cores das roupas. Mas apesar de ter conhecido seres humanos maravilhosos de vários lugares, estas pessoas valem tanto a pena como algumas pessoas que conheço aqui. Tão cheios de vida e puros são os mexicanos daquele camião em Chiapas como o são os habitantes da aldeia dos meus avós em Oliveira. O estrangeiro da peça não escolheu a banda da aldeia para tocar no festival de "World Music"? Então... tudo depende da perspectiva e daquilo que procuramos. E sobretudo da nossa disposição para encontrar e ver. Já me aconteceram muitas coincidências no Porto! E, para mim, estas magias do quotidiano são os indicadores que a vida está a fluir, que a corrente de energias não está bloqueada, que estou a criar o meu destino. Posso até sair de novo do Porto, partir de novo, a nómada em mim o exige. Mas desta vez não será à procura da máquina da felicidade, porque essa é sempre falível em qualquer parte do mundo. O nevoeiro desta cidade, o fumo acumulado pelas gargalhadas adormecidas atinge muitas outras cidades também. E o labirinto está a crescer nos écrãs a cada dia.
É só muito bom quando chegamos a casa. Seja ela onde for.