terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O Ossuário da Família

"(...) era assim, Pedro, tinha corredores confusos a nossa casa, mas era assim que ele queria as coisas, ferir as mãos da família com pedras rústicas, raspar nosso sangue como se raspa uma rocha de calcário, mas alguma vez te ocorreu? alguma vez te passou pela cabeça, um instante que fosse, suspender o tampo do cesto de roupas do banheiro? alguma vez te ocorreu afundar as mãos precárias e trazer com cuidado cada peça ali jogada? era o pedaço de cada um que eu trazia nelas quando afundava as minhas mãos no cesto, ninguém ouviu melhor o grito de cada um, eu te asseguro, as coisas exasperadas da família deitadas no silêncio recatado das peças íntimas ali largadas (...)
Ninguém afundou mais as mãos ali, Pedro, ninguém sentiu mais as manchas de solidão, muitas delas abortadas com a graxa da imaginação, era preciso surpreender nosso ossuário quando a casa ressonava, deixar a cama, incursionar através dos corredores, ouvir em todas as portas as pulsações, os gemidos, e a volúpia mole dos nossos projetos de homícidio, ninguém ouviu melhor cada um em casa, Pedro, ninguém amou mais..."


André, in Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar