domingo, 27 de abril de 2008

Almoço de Domingo

Soneto presente
Não me digam mais nada senão morro
aqui neste lugar dentro de mim
a terra de onde venho é onde moro
o lugar de que sou é estar aqui.
Não me digam mais nada senão falo
e eu não posso dizer eu estou de pé.
De pé como um poeta ou um cavalo
de pé como quem deve estar quem é.
Aqui ninguém me diz quando me vendo
a não ser os que eu amo os que eu entendo
os que podem ser tanto como eu.
Aqui ninguém me põe a pata em cima
porque é de baixo que me vem acima
a força do lugar que for o meu


Ary dos Santos
(na voz de Joaquim Castro Caldas)


A pata que nos põem em cima hoje tem sapatos de veludo, é leve, sedutora, mais perigosa e fatal. Faz-nos acreditar que precisamos dela, que não existimos sem ela, que somos assim como ela. A pata de hoje é magnânima, como todos os centros comerciais inúteis deste país, como todos os sumos de frutas falsamente doces, cada notícia de hipocrisia real, cada Geni torturada que mora ao nosso lado sem querermos notar a sua presença. 

 
Apesar da forte dor de cabeça - talvez por excesso de emoções - agradeço a quem disse este poema com tão acesa chama que aquece corações. E recordo que é essencial o sangue sempre fresco para continuarmos permeáveis às emoções:

Pés Vermelhos

Eu calcei os sapatos vermelhos
há muito
numa manhã de sangue
-fresco-
quiseram tirar-mos
pintá-los de negro perdido
atirá-los à escuridão perversa
dos caminhos de luzes de neón
E outros me foram oferecidos
estranhos e similares
-de verniz também-
com fitas de cetim
daquelas que enforcam
as árvores nos sonhos
-e os sonhos nas árvores-

Mas os meus pés seguiram
-entontecidos-
manchados na sua saudade
daqueles sapatos preteridos

Descalça me vi
sem flores ou lagos transparentes
por estradas
violadas
encarceradas
belas no seu excesso de amor

Mas as pegadas eram de sangue
-sempre fresco, felizmente.


Virgínia Silva

quinta-feira, 24 de abril de 2008

25 de Abril

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andressen


Amanhã há celebração na Associação de Moradores de Massarelos (Rua D.Pedro V, 2) com festa a partir das 21h30. O Rui Spranger, amigos e eu vamos ler poesia, grupos de folk vão actuar (Gaiteiros, Convinha Tradicional) e vai haver comida feita pelas avozinhas e cerveja baratinha! Apareçam :)

domingo, 20 de abril de 2008

Contemporaneidade



"És muito contemporânea!" - disse ele. Eu sinto-me deste século, desta época, mas também de outras vidas, de muitas vidas que existem cá dentro, que se cruzam, relacionam, de muitos sentimentos que se deixaram das dicotomias de amor-ódio, alegria-tristeza e adquiriram estatutos sem nome, mas com densidade e existência real. Sentimentos que foram claros para muitos que fizeram parte da minha história pessoal mais restrita, mas que são obscuros ainda para novos personagens. É como se tudo se passasse intensamente num livro cuja caligrafia foi riscada ou escrita num código por decifrar.
Sinto que tudo pode ser transformado, transfigurado, que as cores podem mudar de tonalidade e existirem em outras formas. Como a lagarta que se transforma numa borboleta, como o homem que acorda na existência de um insecto. Como a mulher que só é mulher à noite, voando durante o dia, com asas protectoras e pés que nunca tocam o chão. Na literatura resolvemos por vezes estas metamorfoses ingenuamente, com poções mágicas. Mas mesmo aí - e porque sim - sobretudo aí, as mudanças precisam sempre de uma prova de fogo, a prova que fará com que os estados humanos permaneçam ou se alterem para sempre. Como a pequena sereia que não teve coragem para matar o seu amado e preferiu continuar sereia a ser mulher muda e sem amor dentro de si. Hoje deixamos as feiticeiras e as suas poções mágicas pelos psicólogos, os diários secretos pelos blogs (in)discretos, mas mantemos inalterável a nossa cegueira. Esquecemo-nos que a nossa real imaginação, a nossa arte muda o mundo!
Sou contemporânea nessa evasão para vários caminhos possíveis e ditos livres. Mas há caminhos que, simplesmente, não interessam, e há outros que não saem de dentro de nós, mesmo quando nós saímos deles. Por isso é tão importante a visão periférica, quando conseguimos perceber os caminhos cá dentro, aquelas setas que apontam todas na mesma direcção. Então, superamos os nossos medos, seguindo-nos, deixando que o nosso corpo - o verdadeiro sábio - nos transporte. E, quando encontrarmos um monstro escondido no caminho, talvez o possamos transformar em algo surpreendentemente belo. E o milagre acontece. Avé Luciano!

quinta-feira, 17 de abril de 2008

On est pas là pour se faire engueuler

Neste momento as vozes em "ê" e em "u" dançam cá em casa. Ontem à noite ainda consegui assistir à 2ª parte do concerto com L'Herbe Folle! Um boa surpresa, estes músicos de Toulouse! Com um chapéu cheio de papelinhos com os nomes das canções, o público sorteava a próxima actuação. E, no final, o chapéu vazio voltou a encher-se da justa generosidade retribuída aos músicos. Até comprei o cd deles, uma graciosa surpresa também, se o comprarem sabem do que estou a falar :) A ver - hoje no Contagiarte, e amanhã e Sábado... não me recordo. Vejam mais em www.lherbefolle.com

quarta-feira, 16 de abril de 2008

O quarto de infância

Entrei por aquela porta castanha e desbotada da rua de S.Roque, a qual deixei de entrar há 18 anos, e passei pelos azulejos esverdeados. Abri a porta do meio e lá estavam as escadas redondas, com desenhos em espiral, em ferro beje e madeira. Subi pelas escadas azuis que a cada passo mostravam a claridade do céu a entrar sob a minha cabeça. Lado direito: o quarto ruidoso e tenebroso, a sala de fumo e ficção científica. Ao centro a escuridão musical do roupeiro, lugar de medos e sonhos. Lado esquerdo - a sinistra italiana - a magnífica casa de banho em mármore onde o Reino de Neptuno existia e... bem junto à varanda do corrimão, o lugar mágico.
A respiração alterava-se no meu corpo que queria viver tudo mais do que eu. Abri a porta e o meu coração diminuiu sem eu saber. E, assim, entre inspirações e expirações entrecortadas, apareceu o palácio de fadas e monstros, vi os filmes de papel do Zé Carioca e do Pateta, os animais selvagens e as casas LEGGO, o urso e o Capuchinho Vermelho na cama altíssima, as cassetes preciosas das explosões de riso, o magnífico espelho de transfiguração de estados de mim, a varanda para as estrelas - para o magnoreiro que crescia até às nuvens, para a Tuxa, para o pátio dos Jogos sem Fronteiras, para o telhado da Ilda, sempre protegida com aquele robe desfasado da vida lá fora. Ali estava o meu quarto. Sem medidas infantis, sem lugar aparente para a infância, mas onde a infância teve lugar. O quarto de onde fugi para a ternura quente dos trópicos, mas que me acompanhou como um passageiro clandestino cá dentro.
E, sem me avisar... ela apareceu. Ela apareceu na sua inocência de arco-íris que mostra as cores todas, mesmo aquele negro negríssimo que pensei ter apagado há anos. Afinal, ela ainda existe, ela está comigo e eu fui muito cruel para com ela. Talvez ainda mais cruel do que a vida! Não tive coragem para a enfrentar porque o encontro foi demasiado presente. Tive só vontade de a chorar como alguém chora por alguém que nos aparece à porta vinda de uma morte que não se cumpriu. Chorei. Chorei por dentro. Mais tarde, na noite do meu quarto de agora, chorei com generosidade para comigo, cheia de vontade. Cheia de saudade ... ... ...
Ela voltará certamente. Porque ela volta sempre. Mesmo sem nós a vermos, ela volta em nós. Quero dar-lhe vida na minha vida com as suas cores de outrora e com aquelas que eu vou reinventando. Porque ela é a minha verdade. A verdade mais nua e crua e - essencialmente - a mais doce.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Poemas Belos

Na ausência do Rui Spranger, estarei na sessão de poesia desta semana com outro Rui... ;)

Nomeei-te no meio dos meus sonhos
chamei por ti na minha solidão
troquei o céu azul pelos teus olhos
e o meu sólido chão pelo teu amor

Ruy Belo


Quinta, dia 17, 23h no Pinguim Café

sábado, 12 de abril de 2008

Amarelo&Azul

Foi uma semana intensa de Workshop de Movimento com o Luciano Amarelo todas as noites. Têm sido viagens cheias de experiências, detalhes, preciosidades a usar no teatro e na vida. Fiquei a saber, segundo as palavras do Luciano, que sou muito "contemporânea"... e cada vez gosto mais e sinto mais o teatro como algo que me entusiasma verdadeiramente - por ser uma arte essencialmente humana - que mexe comigo no fundo na minha barriga, ou seja, no instinto.
E hoje, fui à primeira aula do Workshop de Voz com a Maria do Céu Ribeiro! Isto promete :) Eis o texto que tive de dizer, dirigido a quem precisa de sonhar:

Receita para fazer o azul

Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas a s cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz – eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé – e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.


Nuno Júdice

quarta-feira, 9 de abril de 2008

"The forgotten Prisioners"

Em época de celebração de mais um 25 de Abril relembro a história da Amnistia Internacional, uma organização da qual sou membro activo, que teve a sua origem na nossa infeliz (aliás, como todas) ditadura.
Em 1960, dois estudantes portugueses brindavam à liberdade num restaurante de Lisboa, sem saberem que estavam a ser observados pelos olhos atentos e repressores do regime. Por este único acto, foram condenados a 7 anos de prisão. Enquanto isso, em Inglaterra um advogado lia a notícia no jornal e uma onda de indignação o invadiu. Decidiu agir com a publicação de um artigo em vários jornais ingleses intitulado "The forgotten prisioners" (Os prisioneiros esquecidos). Esta sua acção gerou uma onda de solidariedade à escala mundial através do envio de cartas, dando origem ao movimento da Amnistia Internacional.
Neste momento a AI está à procura desses estudantes - se ainda por cá andam - e eu adoraria conversar com eles, senhores de 60 e muitos anos hoje. Talvez nem se tenham apercebido das consequências que aquele brinde à liberdade provocou, das consciências que despertou, dos prisioneiros de ideais (mesmo que esses jamais possam ser aprisionados) que tem libertado neste nosso mundo, tão perverso e ao mesmo tempo, tão generoso. Vejam o vídeo (watch video) com esta história e com muitas outras mais que necessitam de ser lembradas.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

SOL&TORTILLA

Finalmente, ontem, no parque da cidade, reunimo-nos para o 1º Piquenique Poético com SOL! Vieram amigos do Rui e da Lisa e os Pé na Terra - jovem e promissor grupo de folk que actuou na Quinta no teatro Pé de Vento. Espero que para os próximos piqueniques a poesia destas tardes se vá extendendo a outras levas de amigos e a outros poemas. Este, que poderia ser enviado a muitos presidentes de muitos países deste mundo, ficou-me, mais do que todos:

Le Deserteur

Monsieur le Président
Je vous fais une lettre
Que vous lirez peut-être
Si vous avez le temps
Je viens de recevoir
Mes papiers militaires
Pour partir à la guerre
Avant mercredi soir
Monsieur le Président
Je ne veux pas la faire
Je ne suis pas sur terre
Pour tuer des pauvres gens
C'est pas pour vous fâcher
Il faut que je vous dise
Ma décision est prise
Je m'en vais déserter

Depuis que je suis né
J'ai vu mourir mon père
J'ai vu partir mes frères
Et pleurer mes enfants
Ma mère a tant souffert
Elle est dedans sa tombe
Et se moque des bombes
Et se moque des vers
Quand j'étais prisonnier
On m'a volé ma femme
On m'a volé mon âme
Et tout mon cher passé
Demain de bon matin
Je fermerai ma porte
Au nez des années mortes
J'irai sur les chemins

Je mendierai ma vie
Sur les routes de France
De Bretagne en Provence
Et je dirai aux gens:
Refusez d'obéir
Refusez de la faire
N'allez pas à la guerre
Refusez de partir
S'il faut donner son sang
Allez donner le vôtre
Vous êtes bon apôtre
Monsieur le Président
Si vous me poursuivez
Prévenez vos gendarmes
Que je n'aurai pas d'armes
Et qu'ils pourront tirer


Letra de Boris Vian - Música de Boris Vian e Harold Berg - 1954


sábado, 5 de abril de 2008

Aos meus queridos amigos :) E às pessoas surpreendentes!

Agradeço a todos que contribuíram para, em menos 2 dias, ter superado o número de exemplares necessários para a publicação do livro no qual dois poemas meus estão presentes. Estou muito feliz com o vosso carinho, gentileza e amizade.
Um abraço poético!


quinta-feira, 3 de abril de 2008

Livro Horizonte Noturno

Aconteceu-me algo engraçado. Recebi um email de uma editora de São Paulo à qual concorri num concurso de poesia. Entre muitos autores, fui seleccionada com 2 poemas para fazer parte da publicação de um livro no Brasil. No entanto, para isso tenho de comprar 15 exemplares. Cada exemplar custa 16 Reais (8.60E). Alguém estaria interessado em adquirir um?

Os poemas foram os seguintes:

Clã das cicatrizes

Esta foi pelas palavras
doces da carta
amargas da voz
pela escuridão do roupeiro.

Outra pelas histórias das fadas
não serem de carne e ossos
pelo feijoeiro que nunca cresceu.

Grande
o rasgão do combate
entre o desejo e a fome
a inocência e o humano demais:
rasgão de sangue
que coloria o meu silêncio.

Pela mutilação
das mãos de prata
-mudas e quietas-
guardiãs de uma morte longa

Estas pequenas
muitas, muitas
fortes pela permanência:
dia-a-dia nos meus ouvidos
chicotes dentro de mim.

No final...que magnífico ficou!
Este capote de cicatrizes,
feridas fechadas
e outras em aberto

Presentes, inofensivas
lambidas pela saliva mãe
erguida nas quatro patas.

Rio de Janeiro, Janeiro 2003

A constância

As tuas mãos
firmes
dispostas numa fileira
de pedidos
descomprometidos

E tu,
entreabrindo-te numa raiva

pausada
-distraída –

cobriste de palavras
- apenas palavras -
a página inicial
das tuas memórias

pequenas
- magnânimas -

como a distância
que nos une.
 

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Dancemos juntos!


Esta semana, apareçam para dançar no Teatro da Vilarinha na Circunvalação! São 3 noites de folk que começam amanhã com os Pé na Terra.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Auroras de Carmim

Em outras auroras
eu fazia amor
com as palavras
que deixavas no meu corpo

Todo ele escrito
em lápis de saliva
tua doce caligrafia
de carmim

Eram caracteres
de terras magníficas
em busca do desejo único
sem pontuação

Nessas auroras
a tua poesia
era só de amor

Não tinha política
nem classes esquecidas
nem mágoas
ou sorrisos irónicos

Era de carmim-

Começava pelas cinzas
espalhadas no meu mar
e incendiava
a solidão
dos nossos mundos


Virgínia Silva