sexta-feira, 13 de junho de 2008

A mulher-esqueleto

Ela fora castigada. Ela havia feito alguma coisa que seu pai não aprovava, embora ninguém mais se lembrasse do que havia sido. Seu pai, no entanto, a havia arrastado até os penhascos, atirando-a ao mar. Lá, os peixes devoraram a sua carne e arrancaram os seus olhos. Enquanto jazia no fundo do mar, o seu esqueleto rolou muitas vezes com as correntes. Um dia um pescador veio pescar. Bem, na verdade, em outros tempos muitos costumavam vir a essa baía pescar. Esse pescador, porém, estava afastado da sua colónia e não sabia que os pescadores da região não trabalhavam ali sob a alegação de que a enseada era mal-assombrada.
O anzol do pescador foi descendo pela água abaixo e se prendeu - logo em quê! - nos ossos das costelas da Mulher-esqueleto. O pescador pensou: “Ei, agora apanhei um grande! Agora pesquei um mesmo!” Na sua imaginação, ele já via quantas pessoas esse peixe enorme iria alimentar, quanto tempo a sua carne duraria, quanto tempo ele se estaria livre da obrigação de pescar. E enquanto ele lutava com esse enorme peso na ponta do anzol, o mar se encapelou com uma espuma agitada, e o caiaque empinava e sacudia porque aquela que estava lá embaixo lutava para se soltar. E quanto mais ela lutava, tanto mais ela se enredava na linha. Não importa o que fizesse, ela estava a ser inexoravelmente arrastada para a superfície, puxada pelos ossos das próprias costelas. O pescador havia se voltado para recolher a rede e, por isso, não viu a cabeça calva surgir acima das ondas; não viu os pequenos corais que brilhavam nas órbitas do crânio; não viu os crustáceos nos velhos dentes de marfim. Quando ele se voltou com a rede nas mãos, o esqueleto inteiro, no estado em que estava, já havia chegado a superfície e caia suspenso da extremidade do caiaque pelos dentes incisivos.
- Ai! - gritou o homem, e o seu coração afundou até os joelhos, os seus olhos esconderam-se apavorados no fundo da cabeça e as suas orelhas arderam num vermelho forte.
- Aiii! - berrou ele, soltando-a da proa com o remo e começando a remar loucamente na direcção da terra. Sem perceber que ela estava emaranhada na sua linha, ele ficou ainda mais assustado pois ela parecia estar em pé, a persegui-lo o tempo todo até a praia. Não importava a forma como desviava o caiaque, ela continuava ali atrás. Sua respiração formava nuvens de vapor sobre a água, e seus braços se agitavam
como se quisessem agarrá-lo para levá-lo para as profundezas.
- UUUUiiiiiiiii! - uivava ele, quando o caiaque encalhou na praia. De um salto ele estava fora da embarcação e fugia agarrado à vara de pescar.
E o cadáver branco da Mulher-esqueleto, ainda preso a linha de pescar, vinha aos solavancos bem atrás dele. Ele correu pelas pedras, e ela o acompanhou. Ele atravessou a tundra gelada, e ela não se distanciou. Ele passou por cima da carne que havia deixado a secar, rachando-a em pedaços com as passadas dos seus mukluks. O tempo todo ela continuou atrás dele, na verdade até pegou um pedaço do peixe
congelado enquanto era arrastada. E logo começou a comer, porque há muito, muito tempo não se saciava. Finalmente, o homem chegou ao seu iglo, enfiou-se diretamente no túnel e, de gatas, entrou para dentro. Ofegante e soluçante, ele ficou ali deitado no escuro, com o coração parecendo um tambor, um tambor enorme. Afinal, estava seguro, ah, tão seguro, é... seguro, graças aos deuses, Raven, é, graças a Raven, é, e também a todo-generosa Sedna, em segurança, afinal. Imaginem quando ele acendeu a sua lamparina de óleo de baleia, ali estava ela - aquilo - atirada num monte no chão de neve, com um calcanhar sobre um ombro, um joelho preso nas costelas, um pé por cima do cotovelo.
Mais tarde ele não saberia dizer o que realmente aconteceu. Talvez a luz tivesse suavizado as suas feições; talvez fosse o fato de ele ser um homem solitário. Mas a sua respiração ganhou um quê de delicadeza. Bem devagar, ele estendeu as mãos encardidas e, falando baixinho como a mãe fala com o filho, começou a soltá-la da linha de pescar.
- Oh, na, na, na - Ele primeiro soltou os dedos dos pés, depois os tornozelos. Oh, na, na, na - Trabalhou sem parar noite adentro, até cobri-la de peles para aquecê-la, já que os ossos da Mulher-esqueleto eram iguaizinhos aos de um ser humano. Ele procurou a sua pederneira na bainha de couro e usou um pouco do próprio cabelo para acender mais um foguinho. Ficou a olhar para ela de vez em quando enquanto passava óleo na preciosa madeira da sua vara de pescar e enrolava novamente a sua linha de seda. E ela, no meio das peles, não pronunciava palavra - não tinha coragem - para que o caçador não a levasse lá para fora e a atirasse lá embaixo nas pedras, quebrando totalmente os seus ossos.
O homem começou a sentir sono, enfiou-se nas peles de dormir e logo estava a sonhar. Às vezes, quando os seres humanos dormem, acontece de uma lágrima escapar do olho de quem sonha. Nunca sabemos que tipo de sonho provoca isso, mas sabemos que ou é um sonho de tristeza ou de anseio. E foi isso o que aconteceu com o homem. A Mulher-esqueleto viu o brilho da lágrima à luz do fogo, e de repente ela sentiu uma sede muito grande. Ela aproximou-se do homem que dormia, rangendo e retinindo, e pôs a boca junto à lágrima. Aquela única lágrima foi como um rio, que ela bebeu, bebeu e bebeu até saciar a sua sede de tantos anos. Enquanto estava deitada ao seu lado, ela estendeu a mão para dentro do homem que dormia e retirou o seu coração, aquele tambor forte. Sentou-se e começou a batucar dos dois lados do coração: Bom, Bomm!... Bom, Bomm! Enquanto marcava o ritmo, ela começou a cantar em voz alta:
- Carne, carne, carne! Carne, carne, carne!

E quanto mais cantava, mais o seu corpo se revestia de carne. Ela cantou para ter cabelo, olhos saudáveis e mãos boas e gordas. Ela cantou para ter a divisão entre as pernas e seios compridos o suficiente para se enrolarem e dar calor, e todas as coisas de que as mulheres precisam. Quando estava pronta, ela também cantou para despir o homem que dormia e se enfiou na cama com ele, a pele de um tocando a do outro. Ela devolveu o grande tambor, o coração, ao corpo dele, e foi assim que acordaram, abraçados um ao outro,enredados na noite juntos, agora de outra forma, de uma forma boa e duradoura. As pessoas que não se conseguem lembrar de como aconteceu a sua primeira desgraça dizem que ela e o pescador foram embora e sempre foram bem alimentados pelas criaturas que ela conheceu na sua vida debaixo de água.
As pessoas garantem que é verdade e que é só isso o que sabem.

... do povo Inuit - tribo do Canadá - em Mulheres que Correm com os Lobos de Clarissa Pinkola Estées

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Homenagem aos amigos


Sexta, 6 de Junho. Um dia lindo e especial, inesperado, com palavras doces de lugares por onde passei, vivi ou simplesmente partilhei momentos. Os amigos, o meu maior bem, as minhas melhores prendas, as almas afinadas que estão espalhadas pelo mundo, cada vez menor e mais estreito: Açores, Rio, São Francisco, Sidney, Barcelona, Bruxelas... Porto. Todos aqueles de quem um dia me despedi com imensa saudade de quem tão cedo não se tornaria a ver. É tão reconfortante saber que essas almas estão presentes, ainda que as suas vidas quotidianas estejam tão longe da minha vida de todos os dias. Essa vida que partilho com a família da Vitória. Uma rara família feliz: onde nos chateamos e comemos juntos chouriços assados. Uma família de tempero italiano, com um travo lusitano. Surpreendente é também descobrir outras almas gentis, que nos fazem bolos delicados e deliciados! Parabéns aos queridos irmãos Tralha :)
Ainda bem que celebramos aniversários. Ainda bem que sonhamos em várias línguas. Que tiramos fotografias distorcidas. E que estamos presentes. Dou graças aos
amigos, palmas à sua melodia! À vossa!