segunda-feira, 31 de maio de 2010

Milagres

Na noite de mil estrelas uma vela percorre o mar procurando um corpo. E os olhos de todos a seguem ansiosamente. Ela anda devagar, vai de um lado para o outro, não pára. Arriaram as velas dos saveiros. A lua bate sobre eles, derrama a sua luz suave. As noites do cais, quando são belas assim, são destinadas ao amor. Nessas noites as mulheres que muito temeram pelos maridos muito amor recebem. Quantas noites iguais a estas ela - Lívia tem a cabeça baixa e se recorda - não passou ao lado de Guma, a cabeça dele descansando no seu colo, a luz do cachimbo que ele pitava se confundindo com as luzes das mil estrelas? Quando ele chegava numa noite de temporal, numa noite de muita angústia para ela, iam os dois para o saveiro e se amavam sob a chuva ao clarão dos raios. Era um desejo misturado com medo, com uma angústia inexprimível. Era aquela certeza que ela tinha de um dia o perder num temporal. Era aquela certeza que fazia arrebatado o seu amor. Ele se iria a afogar, ela tinha a certeza. Por isso o amava todas as vezes como se fosse a última. Noites de tempestade, noites feitas para a morte, para eles eram noites de amor. Noites em que os gemidos atravessavam o mar oceano, eram gritos de desafio. Se amavam na tempestade.

Guma foi-se com os tubarões para as terras de Aiocá. Como ele tantos pescadores na Bahía se vão ainda hoje. Guma salvou dois homens, o emigrante árabe e o filho do seu poderoso chefe, sendo ele levado pelo mar, seu doce amigo. Lívia ficou chorando as lágrimas invisíveis do mar morto, como muitas mulheres ainda hoje o fazem. Terá mais sorte que muitas e não se prostituirá, como muitas em Salvador ou outros locais do Brasil, ou do mundo pobre, sem milagres. A pobreza a isso obriga. Meninas de 13 anos - as preferidas pelos turistas - ou mulheres de 40 anos bem violentados na sua juventude - e essas não são queridas, pois as suas carnes já não são tenras e lisas, têm o gosto e o cheiro dos seus usurpadores. As suas juras de amor já não bastam, pois os seus corpos dizem a verdade do tempo.
Em todos os seus livros, Jorge Amado fala em milagres. Fala nos milagres que hão-de vir. O dia em que os meninos de rua deixarão de ser explorados e maltratados, o dia em que os pescadores deixarão de ser levados para Yemanjá no mar morto, o dia em que os feridos, os usurpados, os famintos elevarão as suas vozes nos cais, nos sertões deste mundo. E fala de personagens, que viveram também fora dos seus livros, fazendo justiça por suas próprias mãos, como o Zumbi, Lampião ou Rosa Palmeirão. Seres de coração em sangue, que derramaram o sangue de outros corações. Ele queria que encontrássemos nós os nossos deuses e fizéssemos nós os milagres com as nossas vozes unidas, o nossa humanidade cansada de ser injustiçada. É desses milagres que Jorge Amado falava... e é nessa intenção que me reencontro nas suas páginas. Talvez por isso reaja como uma criança cada vez que termino um livro seu: com um beijo.

Sem comentários: