segunda-feira, 14 de março de 2011

Testamento


Vou partir de avião
e o medo das alt
uras misturado comigo
faz-me tomar calmantes

e ter sonhos confusos


Se eu morrer

quero que a minha filha não se esqueça de mim

que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada

e que lhe ofereçam fantasia
mais que um horário certo
ou uma cama bem feita


Dêem-lhe amor e ver

dentro das coisas

sonhar com sóis azuis e céus brilhantes

em vez de lhe ensinarem contas de somar

e a descascar batatas


Preparem a minha filha

para a vida

se eu morrer de avião

e ficar despegada do meu corpo

e for átomo livre lá no céu


Que se lembre de mim

a minha filha

e mais tarde que diga à sua filha

que eu voei lá no céu

e fui contentamento deslumbrado

ao ver na sua casa as contas de somar erradas

e as batatas no saco esquecidas

e íntegras


ANA LUÍSA AMARAL,
Minha Senhora de Quê
Foto: Beira-mar em San Sebastian, Novembro 2010

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